Advogada há quase 30 anos, Cheryl Berno é conselheira fiscal da Associação Comercial do Rio de Janeiro e membro do Fórum Permanente de Desenvolvimento Estratégico do Estado do Rio de Janeiro. Ela se mostra receosa com o uso de inteligência artificial (IA) em algumas situações, como o anúncio do Tribunal de Justiça do Rio sobre processos serem julgados por essa tecnologia. “Gera preocupação porque não fomos consultados sobre o modelo e não é público o banco de dados que o alimentou. Você quer ser julgado por uma pessoa humana ou por uma IA?”.
SIDNEY: A Justiça tem feito uso cada vez maior da tecnologia com a intenção de diminuir a burocracia. Como a senhora recebe essas mudanças?
CHERYL BERNO: A Justiça tem investido cada vez mais em novas tecnologias. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que tem 7 sistemas de processos eletrônicos, já anunciou uma inteligência artificial (IA), “Assis”, para julgar os processos, o que gera preocupação porque não fomos consultados sobre o modelo e não é público o banco de dados que o alimentou. Você quer ser julgado por uma pessoa humana ou por uma IA? Você sabe que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que seria o fiscal do próprio Judiciário, já implementou o Domicílio Judicial Eletrônico, uma plataforma nacional de citações e intimações, na qual pessoas físicas e jurídicas, até microempreendedores (MEI) e pequenas empresas, devem se cadastrar e acessar para serem citadas e intimadas de ações judiciais, sob pena de multa de 5% do valor da causa por ato atentatório à dignidade da Justiça, perda de prazos e direitos, com prejuízos milionários. Tudo implementado e obrigatório, mas faltando uma semana para o prazo final para o cadastro obrigatório das empresas nesta nova plataforma, o CNJ avisa que mais de 20 milhões de MEIs, microempresas e empresas de pequeno porte, além de empresas de todos os portes do Rio Grande do Sul, ainda não cumpriram a nova obrigação. E, em paralelo, os advogados de todo o Brasil continuam sendo intimados, dos processos destas pessoas, físicas e jurídicas, dentro dos sistemas próprios de cada tribunal e são obrigados a acessar, sem direito a nenhum aviso por meios mais eficientes, como telefone, mensagem, SMS, WhatsApp ou até mesmo o velho e-mail, o que gera muitas vezes perdas de prazo, mais recursos e dificuldades para que a informação de fato chegue ao destinatário, retardando a justiça para todos. Ou seja, não se utilizam nem dos meios existentes, já consolidados, mas seguem criando mais novidades, mais obrigações, mais multas, sem a certeza de que isso tudo, que custa muito aos cidadãos, resultará em uma justiça melhor, mais rápida, mais barata e que responda mais aos anseios da sociedade, que não é ouvida.
A Lei Geral de Proteção de Dados completou 6 anos no Brasil. O cidadão já pode se sentir protegido?
Apesar da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) já estar em vigor há 4 anos, 6 da sua publicação, ainda não “pegou” e os dados estão sendo utilizados indevidamente e até vazando todos os dias. A LGPD prevê até a obrigatoriedade de uma pessoa encarregada dos dados pessoais, para fazer esta ponte com o titular das informações e quem vai usar, exige o consentimento do uso de dados pessoais de forma expressa. No entanto, isso não vem sendo cumprido pela maioria e vemos frequentemente o uso indevido dos dados, até sensíveis, de crianças, adolescentes, de saúde, sem a prévia e expressa autorização, o que pode resultar em multa de até R$ 50 milhões sobre o faturamento das empresas infratoras, que cabe à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que o governo anterior transformou em uma agência, que ainda está se estruturando e tem atuado mais na regulamentação e explicação do que entende que a lei exige. Assim, pode ser que a lei “pegue”, conforme a demanda do povo, como o Código de Defesa do Consumidor que “pegou”. Mas, nem por isso o cidadão deve deixar de exigir a proteção dos seus dados, que valem ouro no mercado.
Como a senhora vê a atuação dos conselhos, sindicatos e associações que representam empresas e profissões?
Os sindicatos, conselhos de profissões, como a OAB, por exemplo, associações e outros organismos de representação precisam se atualizar, criar canais mais eficientes para ouvir os seus próprios associados de uma forma geral e a sociedade, com consultas e audiências públicas. A maioria recebe dinheiro que pessoas, profissionais e empresas são obrigados a pagar (tributos), mas ouvem muito pouco os representados que não são da direção e, assim, a atuação em geral acaba deixando a desejar para a grande maioria. O ideal seria a revisão da legislação federal para a melhoria dos estatutos dessas entidades, para permitir que novas lideranças surgissem, a implementação de planejamentos e orçamentos mais participativos. Na OAB Federal, por exemplo, nem o presidente é eleito ainda pelo voto direto e secreto dos advogados. As micro e pequenas empresas, os microempreendedores precisam ter mais voz nas entidades representativas. A democracia passa longe com esses regramentos arcaicos, engessados e ultrapassados, que precisam ser modernizados e compilados. Precisamos de mudanças urgentes nestes modelos de representação e que a tecnologia seja utilizada para ouvir mais a sociedade representada.
A senhora é membro do Fórum Permanente de Desenvolvimento Estratégico do Estado do Rio de Janeiro. Pensando a nível municipal, já que as eleições estão chegando, o que os prefeitos podem fazer para melhorar as políticas públicas?
As políticas públicas deveriam resultar de um processo de participação direta e constante da sociedade, por consultas, audiências públicas, atribuição do poder mais efetivo de fiscalização direta, e temos meios para fazer desta forma. É interessante que até a Câmara dos Deputados e o Senado Federal utilizem estas ferramentas para consultar a população, e os prefeitos e vereadores depois das eleições não as utilizam. Pelo contrário, temos ouvido candidatos a prefeitos e vereadores fazerem promessas que sabem que não estão na sua alçada, o que demonstra claramente que já começam enganando os eleitores, que serão abandonados logo após o voto. O prefeito deve cuidar da cidade, dos impostos, taxas e contribuições que pagamos para a prefeitura, arrumar as calçadas, fiscalizar o trânsito, ter meios eficientes para impedir o barulho excessivo, sinalizar, cuidar das creches, postos de saúde, escolas municipais, transporte, praças, parques, árvores, organizar a cidade; e os vereadores devem fazer as leis que regem estas matérias. A segurança pública, tão invocada por muitos candidatos, é de responsabilidade do Governo estadual, portanto, é preciso que a população se informe melhor, para já excluir os que prometem o que nem tem competência para fazer. As políticas públicas municipais dependem também da escolha pelo prefeito de profissionais competentes e preparados para o time de gestores públicos, da inteligência humana, antes de tudo, e até de parcerias com entidades como o Sebrae, que tem se mostrado um apoio eficiente na implementação de melhorias nos governos municipais.
O que é preciso fazer para desburocratizar os processos para microempreendedores e pequenas empresas?
Para desburocratizar não é preciso só inovar e passar tudo para o meio eletrônico, criando uma “e-burocracia”, como provam as longas filas virtuais no INSS, de processos para julgamento na Receita Federal, as declarações eletrônicas que se multiplicam, também em campos. Tem processo eletrônico, no e-CAC (plataforma da Receita Federal de processos), parado faz quase 30 anos: a novidade foi digitalizar, mas julgar ficou de lado. O cidadão fica sem ter com quem falar e nada substitui a comunicação entre humanos. É preciso que os servidores públicos se comuniquem melhor, entre si e com os usuários, de forma mais eficiente, até por telefone, e-mail, WhatsApp, reuniões virtuais, que atendam ainda pessoalmente, quando necessário, para que não obriguem os contribuintes a entregarem declarações repetidas, para que não fiquem jogando o contribuinte de um órgão para o outro, para que esclareçam melhor estas obrigações infindáveis e que geram interpretações variadas. O campo tributário é ainda muito complexo, apesar das novas tecnologias, e não pensem que a reforma tributária vai simplificar porque já nasce confusa, vamos conviver com os velhos e novos impostos por um bom tempo. É preciso investir mais, antes de tudo, em inteligência humana, para uma análise crítica dos problemas, para resolvê-los e não simplesmente dizer que está se fazendo alguma coisa. As multas que são cobradas até por erros nas dezenas de declarações e representam uma verdadeira deformação do sistema. Não é possível que uma empresa ser multada, por exemplo, em R$ 80 mil porque não transmitiu uma declaração nova, mesmo tendo pago todo o imposto. Em plena era de inteligência artificial não vemos movimentos de interação entre os próprios fiscos e a sociedade, que é a destinatária das normas e obrigações. É preciso ouvir mais o usuário e seus representantes, como os contadores, os advogados, empresários, que lidam com esta complexidade toda, para saber o que precisa mudar e como, para tornar o cumprimento de obrigações algo mais fácil, mais simples, mais amigável e acessível para as pessoas comuns. Também não adianta ter sistemas de ouvidorias só para constar, que não tem fluxos que de fato resolvem os problemas, que cria mais um negócio só para constar, só para cumprir tabela, mais uma frustração para o pobre cidadão, que no final paga todas as contas. Fica claro que inventar novidades a cada ano e tornar as obrigações eletrônicas, não significa necessariamente simplificar a vida dos usuários porque criam mais sistemas e os cidadãos que corram atrás para conhecer e utilizar, o que gera mais obrigações e mais custos, sem a redução das já existentes, muitas obrigações são repetidas e confusas e o destinatário muitas vezes só descobre que existiam quando recebe a multa. Seria importante que o Poder Público em geral colocasse estas novas tecnologias em consulta e audiências públicas, para que toda a sociedade pudesse opinar e sugerir melhorias antes da adoção. Os cidadãos são os destinatários, mas raramente são consultados previamente para ajudar na construção das novas tecnologias, para que sejam de fato mais fáceis e acessíveis, do ponto de vista do usuário.