Jornalista há mais de duas décadas, Rui Gonçalves Barbosa é apaixonado por aviação e desde cedo leitor ávido sobre o assunto. Antes da vida de repórter, fez cursos de piloto, iniciando ali uma trajetória de mais uma centena de horas de voo. Quando foi editor-chefe de revistas sobre aviação, teve Ozires Silva, cofundador da Embraer, como colunista, que o inspirou anos mais tarde a escrever "Saga - do 14-Bis à Criação da Embraer". O livro, que será lançado dia 29, conta os bastidores da aviação e como foi a criação da principal indústria aeronáutica do país.
SIDNEY: O seu livro demorou para ser concluído. Quanto tempo de pesquisa e o que ele traz de novo para quem é apaixonado pela aviação?
RUI GONÇALVES BARBOSA: Foram 3 anos de trabalho contínuo, mas a ideia nasceu em 2016 quando eu fui editor-chefe das revistas Avião Revue e Airports International Brasil. Ozires Silva, fundador da Embraer, era nosso principal colunista. A convivência fez com que crescesse a minha curiosidade como ele havia conseguido criar aquela empresa em um país de industrialização recente e altamente de investimentos estrangeiros. Além do mais, Ozires era major da Força Aérea Brasileira, o que me fazia perguntar como um militar com uma patente que não lhe dava poder de decisão havia convencido brigadeiros, ministros e o próprio presidente da República a criar uma fábrica de aviões. Com isso, o que esse livro traz de novidade é contar essa história a partir da história de vida das pessoas essenciais à criação da empresa, contextualizando aspectos políticos e econômicos. A história mais conhecida da criação da Embraer fala de Ozires, um menino de Bauru que sonhou em fabricar aviões, algo simplista demais para uma conquista tão grande.
Quem são os personagens principais e como o senhor chegou até eles?
Sempre ouvi de Ozires Silva que ele não fez esse trabalho sozinho, apesar do nome dele ser sempre o único citado. É a mais pura verdade. Havia muita gente envolvida, profissionais altamente capacitados. Mas o meu desafio foi identificar quem são as pessoas fundamentais para esse projeto. Eu cheguei a três nomes e posso afirmar, categoricamente, que não haveria a Embraer sem qualquer um deles. Com isso, o livro conta as trajetórias de Casimiro Montenegro Filho, criador do Centro Técnico de Aeronáutica (CTA), hoje DCTA, e do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), primeiro instituto do Centro Técnico, inaugurado em 1950. Montenegro é uma personalidade desconhecida do público em geral, sendo reconhecido somente por militares da FAB. Paulo Victor da Silva, sucessor de Montenegro no CTA, foi o viabilizador do projeto. Ele abraçou a ideia de construir um avião nos laboratórios do Centro Técnico e, posteriormente, criar a empresa que o fabricaria. Ele foi o grande articulador e interlocutor, além de ser um personagem complexo, com participação em alguns dos momentos políticos mais importantes do Brasil no século 20. Mas Paulo Victor é pouco conhecido até mesmo dentro da FAB e este livro tem o objetivo de oferecer a ele o reconhecimento pelo seu feito. Ozires Silva é um idealista incorrigível que foi capaz de sacrificar sua vida pessoal pela possibilidade de construir um avião e oferecer ao país as condições para desenvolver a indústria aeronáutica com um nível de sucesso que não havia sido alcançado em tentativas anteriores. É importante dizer também que, apesar de ser o mais conhecido dos três, Ozires Silva também não tem o reconhecimento à altura de seu feito. Ele é o único entre os três que está vivo, prestes a completar 94 anos de idade.
Qual a explicação para a existência de uma empresa de alto nível tecnológico como a Embraer em um país com tanta desigualdade social?
Após me aprofundar nas histórias desses três personagens, posso dizer que todos eles eram idealistas e sonhavam em criar as condições para o desenvolvimento do país, colocando suas próprias vidas e carreiras em jogo. Em nenhum momento desse projeto houve o entendimento por parte do governo federal de que tanto o projeto do CTA e ITA quanto o do Bandeirante, primeiro avião construído pelo grupo de Ozires dentro do CTA, receberam o apoio necessário para um projeto de desenvolvimento industrial e formação de profissionais de alta qualificação para o país. O ITA e o CTA foram alvo de ataques por parte de militares da FAB com grande poder de influência, em especial pelo brigadeiro Eduardo Gomes. O brigadeiro, que por duas vezes concorreu à Presidência da República e foi derrotado, era um vigoroso oponente ao projeto de Montenegro e, após o Golpe Militar de 1964, quase conseguiu desfigurar o CTA, transformando o centro de pesquisas em uma espécie de oficina para manutenção de aviões. Ele fez do ITA mais uma instituição exclusiva para militares, algo que ia de encontro com a filosofia implementada por Montenegro. Eduardo Gomes era ministro da Aeronáutica quando o projeto do Bandeirante chegou ao Ministério solicitando aprovação. O brigadeiro aprovou, mas não destinou nenhum centavo para a construção. A criação da Embraer foi um projeto pessoal que conseguiu encontrar brechas e uns poucos facilitadores capazes de se esquivar de todos os esforços contrários existentes dentro da própria Força Aérea Brasileira.
Por que levamos mais de 60 anos para iniciar a produção bem-sucedida de aeronaves se um brasileiro foi pioneiro na aviação?
Santos Dumont não demonstrou interesse em tornar seu invento um produto, apesar de seu segundo avião, o Demoiselle, apresentar todas as características necessárias para competir com a primeiríssima geração de aeronaves fabricadas no início da aviação. No Brasil, havia quem se arriscasse em fazê-lo, mas o país não reunia as condições necessárias para tanto. Não havia como fabricar estruturas e motores. Quem tentou, fez isso de forma artesanal e com pouco sucesso. Os aventureiros ricos, que desejavam ter seus próprios aviões, importavam da França. As aviações do Exército e Naval também sofreram para adquirir e manter suas aeronaves e formar seus pilotos. Dez anos após o voo de Santos Dumont, a construção aeronáutica por aqui havia avançado muito pouco, enquanto na Europa aeronaves ingressavam em campos de batalha antes mesmo do início da Primeira Guerra Mundial. Só no final dos anos 1910 e início dos anos 1920 que tentativas de produzir aviões começaram a florescer, ainda dependente de incentivos governamentais para suprir um mercado interno bastante limitado. Somente com o advento da Segunda Guerra Mundial houve avanço no setor, com a fabricação de aviões para equipar aeroclubes, numa campanha para abrir escolas de aviação e formar pilotos pelo país. Mas quando a guerra acabou, o governo não teve interesse em continuar fomentando a fabricação de aeronaves por aqui, entre outros motivos, porque havia um excesso de aeronaves para o conflito e que eram comercializadas a baixo custo. Portanto, todas as iniciativas até a criação da Embraer padeceram de um mesmo mal: a dependência de compras governamentais. Foi Ozires Silva que rompeu com isso, entendendo que seu primeiro avião deveria atender a Força Aérea e ter uma versão civil para as demandas vindas da aviação civil ao redor do mundo. Sendo assim, Ozires tinha não só uma visão comercial para o seu produto, mas a intenção de exportá-lo em larga escala.
Qual é a importância da educação e da engenharia nessa história de sucesso?
A educação foi fundamental. Começamos pela criação do ITA, uma escola de engenharia de altíssimo nível organizada nos moldes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Por puro acaso, Montenegro teve a oportunidade de conhecer, durante a Segunda Guerra Mundial, e decidiu que o Brasil precisava de uma escola semelhante. O legado de Montenegro para a educação do país foi tão importante a ponto de ter sido a primeira personalidade reconhecida pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira em uma premiação oferecida a ele no início dos anos 1980. No caso de Ozires, a educação foi determinante para a sua formação. Nos anos 1940, ele teve acesso, também por puro acaso, ao que hoje chamamos de escola integral (ensino durante todo o dia) e formação vocacional (para o trabalho). Menino curioso e muito inteligente, ele complementava as atividades regulares da escola passando as tardes na oficina de aeromodelismo e na fábrica de planadores mantidas pelo Aeroclube de Bauru, em São Paulo. Além disso, esse foi o período em que o recém-criado Ministério da Aeronáutica colocou em prática a criação e o aparelhamento de aeroclubes pelo país, para formar aeronautas, compor o corpo de reservistas da FAB e preencher vagas nas empresas aéreas que começavam a se expandir. No caso de Ozires, ele foi mais um entre milhões de jovens brasileiros, nascidos em pequenas cidades, cujos pais são trabalhadores comuns, sem nenhuma influência econômica ou social e que têm, até os dias de hoje, grandes sonhos que precisam encontrar terreno fértil para se desenvolverem.
É possível estabelecer uma relação entre o Brasil de Montenegro, Paulo Victor e Ozires Silva com o Brasil atual?
Pode parecer lugar-comum, mas enquanto escrevia o livro, eu via a história do Brasil de meados do século 20 se repetir. Os mesmos embates políticos, os mesmos choques entre parcelas da sociedade e a mesma ameaça de rompimento democrático que tantas vezes ocorreram no século passado passaram a ser presentes. Ainda desperdiçamos talentos e celebramos quem, com muito esforço, supera as próprias dificuldades para construir algo relevante. Além da queda de braço de um modelo econômico que privilegia o investimento estrangeiro contra aqueles que defendem a necessidade de formar pessoas e desenvolver nossas próprias capacidades.
Por que o governo brasileiro compra aviões de empresas estrangeiras se temos a Embraer? É pelo alto custo?
Aviões são grandes máquinas, complexas, muito caras e cada um deles destinado a realizar tarefas específicas. A Embraer se consolidou em um segmento de mercado, denominado Aviação Regional. Quem sabe, no futuro, ela possa ter uma variedade de modelos tão vasta a ponto de suprir com sucesso comercial e financeiro todas as necessidades do país. Entretanto, isso é praticamente impossível e não deve encontrar viabilidade. Desse modo, sempre haverá a necessidade de adquirir produtos e serviços aeronáuticos de diferentes fornecedores.
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