Música da discórdia: Ave Maria diária em Icaraí tem coro de apoio e xingamentos
Iniciativa de morador da Rua Álvares de Azevedo, de botar a canção religiosa em volume alto na janela, divide opiniões e cria discussões entre vizinhos
Por Irma Lasmar
Niterói - Uma iniciativa em prol da fé, união e paz em tempos de pandemia de coronavírus acabou se tornando motivo de discórdia e confronto verbal entre vizinhos de uma quadra em Icaraí. Diariamente às 18h, desde o início do período de isolamento social na cidade, um morador da Rua Álvares de Azevedo aumenta o som da música Ave Maria, que ecoa do apartamento para a rua, sendo ouvido pelos residentes de prédios próximos. O resultado, em vez de pequenos minutos de acalento e conforto, são reações que divergem entre o apoio de quem canta junto e retaliações na forma de xingamentos altos de dezenas de pessoas pelas janelas no trecho entre as ruas Tavares de Macedo e Gavião Peixoto. Para rebater os palavrões, uma voz feminina ressoa alto de outro edifício cantando a música de modo mais fervoroso, semelhante a uma pregação, acirrando ainda mais os ânimos e discussões.
"Na primeira vez em que tocou a canção fiquei maravilhada e emocionada, como quem é reportada para outro lugar e situação, de paz e de amor. Desde então, todo dia às seis da tarde eu subo para o terraço com meu bebê de um ano de idade para ouvirmos a Ave Maria, e ele adora! É muito mais do que uma música, mas elixir de equilíbrio para nós e para o ambiente. Não tenho palavras para descrever minha indignação com quem desrespeita isso", conta a consultora de estilo G.F.N., de 39 anos. "Independentemente da religião de cada um, a Ave Maria traz tranquilidade e acolhimento, sendo um ótimo momento para reflexão sobre a vida, ainda mais nesse momento difícil de quarentena. Pena que nem todos estejam abertos a perceber isso e, pior de tudo, ainda desrespeitem quem gosta. Realmente tenho pena dessas pessoas que se incomodam e se revoltam tanto com algo tão positivo", opina a arquiteta D.G., de 57 anos.
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A manifestação em represália à Ave Maria é tão brutal que, assustados, os simpatizantes da iniciativa preferiram não se identificar nesta reportagem.
"São minutos especiais que renovam minhas energias. Paro tudo o que estou fazendo para meditar com a música. Pena que há gente intolerante fazendo de tudo para sabotar esse momento", lamenta a administradora S.M.F., de 50 anos. "Niterói, que já foi a cidade-sorriso, virou palco da intolerância. Deixamos de ser laicos para tudo terminar em discussão política, religiosa e partida de futebol", dispara a psicóloga P.L.M., 45 anos.
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Uma moradora se entristece todas as vezes em que um vizinho rebate a música tocando uma vuvuzela na janela.
"Todos os dias, paro o que estou fazendo para ouvir a Ave Maria. Não conheço quem a toca, mas sou grata por ter escolhido essa melodia leve e tranquilizadora. Esse instante é como um ar puro para respirar depois de um dia inteiro usando máscaras que sufocam. Batemos palmas ao final, e esse gesto - que sempre foi automático - faz nos sentirmos menos sozinhos nesse isolamento", relata a médica L.R.B., de 28 anos. "Tem quem não goste, e eu entendo. Imagino que quase todos já ouvimos músicas de que não gostamos em shows, filmes, festas, churrascos. Mas nessas ocasiões, cara a cara, não vejo pessoas gritando, colocando outras músicas mais altas ou tocando corneta para contestar. Em protesto, batemos palmas mais alto nesses dias".
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Procurados por O DIA, os opositores à iniciativa não receberam nossa equipe nem quiseram dar entrevista.
"Em meio à pandemia, quando o sentimento de união deveria emergir, o que temos visto são manifestações de ódio e intolerância nos âmbitos racial, político e religioso. Cinco minutos, que poderiam ser de reflexão, tornaram-se momentos de ofensas, com palavras de baixo calão ditas em tons exagerados e direcionadas a idosos. Queria deixar registrado meu apreço à resiliência da pessoa que nos presenteia com esse momento de oração, e que, mesmo no meio de toda essa revolta, continua com o seu propósito firme desde o início do isolamento", resume o psicólogo D.M., de 27 anos.