Por adriano.araujo

Rio - As práticas de tortura física e psicológica lembram o fantasma de 1964: saco plástico na cabeça para asfixiar, choques elétricos, inclusive na barriga de uma grávida, golpes pelo corpo até o desfalecimento e muitas ameaças. Para ‘não contar o que sabia’, corria-se também o risco de sofrer violência sexual.

Na Rocinha de 2013, quase 50 anos depois da ditadura, foram estes os instrumentos de coação adotados por policiais da UPP contra moradores. Diante dos fatos, a promotora Gláucia Maria da Costa Santana , da 6ª Promotoria de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania, quer que o Estado indenize em pelo menos R$ 50 mil cada uma das nove vítimas que teriam sofrido torturas na favela. No grupo, está a história do pedreiro Amarildo Dias de Souza. Neste caso, a família dele que receberia o dinheiro.

Em 2013%2C policiais civis investigam a UPP da Rocinha em busca dos restos mortais de AmarildoAlexandre Brum / Agência O Dia / 14.03.2013

O pedido foi feito numa Ação Civil por Ato de Improbidade Administrativa, em que a promotora pede, ainda, a perda da função pública de 31 policiais e a suspensão dos direitos políticos deles por até cinco anos. E, também, a condenação do Estado ao pagamento a título de dano moral difuso, no valor mínimo de R$ 450 mil. Quantia que deve ser revertida a um fundo estadual de defesa dos interesses difusos e coletivos da sociedade. “Os moradores da Rocinha tiveram seus direitos humanos violados, suas dignidades afrontadas, por quem, em via de regra, deveria protegê-los”, diz um trecho da ação.

Dos 31 policiais militares citados no documento que pede o pagamento às vítimas, 13 já estão presos, entre eles, o major Edson Santos e o tenente Luiz Felipe de Medeiros, por causa do envolvimento no desaparecimento do Amarildo. Procurada pelo DIA para falar sobre o teor da ação, a Polícia Militar não comentou o pedido de indenização a moradores, mas informou que as acusações, à exceção do caso Amarildo, não são substanciais.

A ação foi protocolada na semana passada e está na 5ª Vara de Fazenda Pública. Para Gláucia, o que mais a surpreendeu ‘foi a frieza com que (os policiais) praticavam as torturas simplesmente por afirmarem suas autoridades na comunidade ou então para terem acesso a informações sobre esconderijos de armas, drogas e pessoas envolvidas com o tráfico’.

As torturas eram adotadas como ‘técnicas’ para delação, diz o MP. Os depoimentos são chocantes e mostram que, pela gravidade das agressões, Amarildo — que desapareceu na favela em julho do ano passado — poderia não ter sido o único a morrer. Num dos relatos, um menor conta que foi obrigado a beber cera líquida. Um outro teve cacos de vidros esfregados na boca. Já uma jovem grávida levou uma série de três choques na barriga. Outra abortou, após ficar nervosa e passar mal ao ver o companheiro sendo torturado.

Os casos que o MP pede indenização ocorreram entre abril e setembro de 2013. As datas dos depoimentos mostram, portanto, que, mesmo diante da repercussão da notícia da morte do pedreiro, os policiais continuaram com as sessões de tortura.

Família de Amarildo também entrou com ação

A família de Amarildo também está com um processo contra o Estado para que eles sejam indenizados pela morte do pedreiro. De acordo com o advogado João Tancredo, responsável pela causa, não foi estipulado um valor a ser pedido. O caso, no entanto, deve se arrastar. “O Estado já contestou e disse que o Amarildo não foi morto por policiais militares. Um absurdo! A família já sabia o que tinha acontecido logo que ele desapareceu. Tanto que eu entrei com o pedido 20 dias após o episódio”, disse Tancredo, que considera “louvável” a atitude do Ministério Público de pedir também a indenização. O pagamento do ressarcimento, no entanto, só pode ocorrer uma vez.

Na Ação Civil, que trata das vítimas de torturas na Rocinha, a promotora Gláucia Maria afirma que os policiais “desvirtuaram, com suas ações, o propósito do programa de UPP, que trabalha com a filosofia de polícia de proximidade, buscando a construção de um vínculo de confiança mútua entre o policial e o cidadão, fundamental para o desenvolvimento de áreas que durante décadas estiveram sob controle do crime organizado”.

Relatos que constam na Ação Civil do Ministério Público

Pedreiro Amarildo sumiu em julho de 2013%3A corpo nunca apareceuReprodução

MAIO, NA RUA DOIS, o adolescente Z. (*) foi asfixiado por um soldado com um saco plástico na cabeça. Em seguida, o jovem foi levado para o Centro de Comando e Controle da comunidade. Seus pés foram amarrados, e o policial militar ameaçou introduzir um cabo de vassoura no garoto, enquanto gritava que ia matá-lo. Uma semana depois, na mesma rua, o soldado, acompanhado por outros três policiais não identificados, abordou o rapaz e o levou para dentro de um barraco. No local, Z. foi novamente torturado. O grupo esfregou na boca do adolescente cacos de vidro, o que provocou cortes na mucosa e arranhões no rosto. O policial está preso por causa de envolvimento no caso Amarildo.

ABRIL, NO BECO DA ROCINHA, o adolescente T. (*) foi torturado para dar informações sobre traficantes e armas. Os dois soldados aplicaram choques elétricos no rapaz e tentaram asfixiá-lo com um saco plástico na cabeça. O morador só foi solto após a chegada da sua mãe e a movimentação de vizinhos. Meses depois, no dia 13 de julho, no banheiro do Centro de Comando e Controle da comunidade, os policiais colocaram a cabeça de T. dentro de um vaso sanitário e acionaram diversas vezes a descarga. Logo depois, o morador foi obrigado a ficar pelado. Ameaçaram introduzir um cabo de vassoura em seu ânus e o obrigaram a ingerir cera líquida. Um soldado está preso devido ao desaparecimento do Amarildo e o outro não tem acusação na Corregedoria.

MAIO, OS ADOLESCENTES K. e X. (*) foram abordados por um soldado enquanto conversavam. Sob o pretexto de interrogá-los sobre locais onde poderiam ter drogas escondidas, o policial ordenou que os jovens deitassem no chão. Os dois foram agredidos com tapas nos rostos. X. ainda levou chutes na perna, na coxa e nas nádegas. Ele já tinha sofrido abuso de autoridade de outros soldados. Foi em abril, em um ponto de ônibus na Rua Dois. Sua roupa de trabalho foi retirada de dentro da mochila, jogada no chão e pisoteada. Ele foi agredido e desmaiou, após cuspir sangue. Por causa do episódio, sua mulher, que estava no segundo mês de gestação, ficou nervosa, passou mal e sofreu um aborto espontâneo. Contra os três militares envolvidos no episódio não há nada na Corregedoria da corporação.

ABRIL, A CASA DO JOVEM C. (*) foi invadida, durante a noite, enquanto jantava, por um soldado e um tenente. O rapaz foi levado para fora da residência, em canto escuro, e ameaçado de morte. Foi iniciada uma sessão de torturas, com tapas no rosto, chutes e socos no peito. Até que o oficial, ‘cansado’ de assistir aos atos de agressão, pediu que fossem interrompidos. Em seguida, a mulher do jovem, que também estava na residência, e à época estava grávida, foi ameaçada. Os policiais disseram que iriam cortá-la e explodir o gás de cozinha. Amedrontado, o casal se mudou da comunidade. Os militares já estão presos por participação no desaparecimento do pedreiro Amarildo.

SETEMBRO, O CASAL K. E F. (*) voltava de uma festa quando iniciou uma discussão numa rua da comunidade. Um soldado abordou os dois, na Rocinha, e ordenou que ‘metessem o pé’ (fossem embora), caso contrário seria obrigado a ‘bater e dar tiro de arma de choque’. Como não foi atendido, o militar aplicou uma série de três choques na barriga de F., que estava grávida. Ela, assim como seu companheiro, levou também tapas e recebeu golpes de cassetete. O soldado responde a Conselho de Revisão Disciplinar.

JULHO, DIA 14, O PEDREIRO Amarildo foi detido quando voltava de uma pescaria. Ele foi levado por policiais da UPP para o contêiner do comando para ‘informar onde estava o paiol do tráfico’. Ali, começou uma sessão de tortura com choques e teve a cabeça afogada num balde. O corpo dele foi enrolado na capa de uma moto e retirado da favela por uma mata, segundo as investigações. Dois dias depois, a família registrou o seu desaparecimento. De acordo com Inquérito Policial Militar, 29 policiais acusados de envolvimento no caso cometeram crimes no âmbito da Justiça comum, e não da Militar. No grupo, estão o major Edson Santos, ex-comandante da UPP, e o tenente Luiz Felipe de Medeiros, ex-subcomandante da unidade.

?(*) Os nomes das vítimas foram omitidos para que elas não sejam identificadas

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