Por daniela.lima

Rio - Elas estão encravadas nas paredes e muros de pelo menos 14 mil imóveis do Complexo da Maré, segundo estimativas de lideranças comunitárias. Nada menos do que um terço das 40 mil residências da região, que está ocupada pelas forças de segurança e onde vivem 130 mil pessoas. Como chagas de feridas que nunca se fecham, as marcas de balas perdidas, há décadas fazem parte da “decoração forçada” das fachadas. 

Tiros nas paredes%2C muros e postes são como ‘antigas decorações’%2C segundo os próprios moradoresSeverino Silva / Agência O Dia


São os frutos de guerras entre facções criminosas e a polícia nas 16 comunidades do complexo, onde ao menos 30 pessoas morreram em confrontos ou por balas perdidas nos últimos 12 meses. O assunto virou objeto de estudo, por iniciativa do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDH).

“Essas indesejáveis marcas sugerem que o terror, o medo e o desespero estão presentes o tempo todo na vida dos cidadãos que moram naquelas comunidades e que não podem ser enxergados como coitadinhos pela sociedade em geral. O cenário é uma dura lembrança de uma tragédia diária”, diz o advogado do IDDH, João Tancredo.

“Um número oficial de imóveis atingidos ou que já foram alvejados nos últimos anos dará uma dimensão ainda maior do drama vivido nessas áreas de permanentes conflitos”, completa o presidente do IDDH, Thiago Melo.

EM MUDANÇA

Moradora da Vila dos Pinheiros, Maria do Socorro Araújo, de 40 anos, convive com três rombos no alto da janela de sua casa, provocados por balas de fuzil 7.62, resultantes de suposto confronto entre traficantes e soldados da Força de Pacificação que, no início do mês, começou a ser substituída por PMs. No dia 20 de janeiro, seu filho, Felipe Araújo, 23, foi morto com um tiro no peito. Ela acusa homens do Exército. A corporação nega. “Os buracos parecem um aviso macabro de que a próxima vítima fatal e inocente pode ser eu. É uma tortura psicológica sem fim. Por isso, estou indo embora desse lugar”, justifica Maria.

Vídeo que vem sendo exibido no perfil ‘Maré Vive’, no Facebook, desde janeiro, mostra uma casa inteira fuzilada na Vila dos Pinheiros. Os estragos nas paredes, no teto e nos aparelhos domésticos foram provocados por fuzis calibres .30 e .50, capazes de derrubar aeronaves.

“Meu Deus... Não morrer ninguém aí foi um milagre. A casa virou peneira”, comentou um dos mais de 13 mil internautas que visualizaram a publicação. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, afirma repetidamente que a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em comunidades violentas “é irreversível”.

Sociólogo: ‘Morador é herói e não um coitado’

Para o sociólogo do Observatório de Favelas e especialista em Estudos de Violência Urbana, Eduardo Alves, os moradores da Maré são vencedores. “Guerra só existe para quem defende interesses próprios. A população do Complexo da Maré não é pobre coitada, mas heroína, vencedora, que conquista investimentos públicos e aprendeu a se superar, a inventar jeitos de se divertir, de viver em sociedade, de resolver problemas”, diz.

A psiquiatra Maria Thereza Aquino, da Uerj afirma que quem convive num território crivado de balas pode até desenvolver doenças. “Problemas cardíacos, depressão, ansiedade e desnutrição são alguns dos sintomas. O medo perene instala uma espécie de eterna angústia. A marca de bala no imóvel é uma corda na casa do enforcado”, compara.

Tiros refletem descaso com pessoas

Na interpretação do antropólogo e ex-capitão do Bope, Paulo Storani, especialista em segurança pública, a grande quantidade de marcas de tiros nas moradias “reflete o descaso permanente com a vida dos moradores, tanto da parte dos bandidos, quanto das autoridades”.

“Dos traficantes, já é de se esperar. A polícia, por outro lado, vive o dilema de trocar tiros com quadrilhas e vitimar inocentes, ou evitar disparos. O fato é que, como em qualquer lugar do mundo, onde há mais armas de longo alcance em circulação, mais tragédias estão propensas a ocorrer. O caminho da paz não é por aí”, opina Storani.

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