Por felipe.martins

Rio - As cenas, desconfortáveis para o espectador, se repetem a cada manhã na Ceasa de Irajá. Entre 8h e 9 horas, os caminhões começam a sair da plataforma, também conhecida como 'pedra', depois de uma madrugada inteira de descarregamento. É quando se pode constatar a real extensão do desperdício de alimentos: o fosso está apinhado de frutas, legumes e verduras descartados. Naquele momento, entra em campo uma legião de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e têm no lixo a sua possibilidade de sobrevivência.

Com olhos atentos e treinados para localizarem produtos aproveitáveis, homens, mulheres e crianças circulam pelas ruas da Ceasa, percorrendo o fosso e as caçambas de lixo — não é raro ver alguém quase mergulhado numa delas. Quando veem alimentos com ótima aparência, mostram certa satisfação. É como se o dever tivesse sido cumprido.

Por volta das 9 horas de uma manhã de junho, uma caçamba de lixo era revirada pelas mãos experientes da viúva Verônica Ribeiro de Oliveira, de apenas 25 anos de idade e mãe de três filhos: Nicolas, de 6; Pablo, de 3; e Nicole, de 1 ano. O DIA acompanhou a ‘feira’ da mulher. Ao lado do sobrinho Guilherme, de apenas 14 anos, ela pegou um molho de verdura. “É erva-doce. Vai dar para fazer chá”, disse.

Moradora da Baixada e mãe de três filhos%2C Verônica revira as caçambas de lixo da Ceasa%2C uma vez por semana%2C em busca da sobrevivência de sua famíliaDivulgação

Enquanto arrastavam os dois carrinhos de feira pelas ruas da Ceasa, sempre beirando as plataformas, Verônica e Guilherme observavam atentamente o que havia sido descartado. Os olhos dela identificavam rapidamente o que estava em boas condições e ainda não havia nos carrinhos. Com mãos ágeis, separava as bananas que levaria para casa, entre a pilha da fruta que transbordava da caçamba de lixo.

Verônica e Guilherme moram em Gramacho, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Segundo ela, uma vez por semana vai à Ceasa. Na manhã de 16 de junho, Verônica encheu o carrinho com mamão, abacate, tomate, abóbora, tangerina, laranja, banana e maracujá, além da erva-doce. Todos os alimentos foram pegos em caçambas de lixo. “Agora vou rodar mais para encontrar cebola e batata”, avisou.

A moça, que trabalha numa lanchonete e tem salário de R$ 680,00 mensais, divide o resultado da feira com o pai. “A maior parte do meu dinheiro vai para aluguel, água e luz, e ainda tenho que comprar coisas que meus filhos precisam, como roupa e carne. Não tenho como ter despesa com frutas, legumes e verduras. É tanta coisa boa desperdiçada. Se não fosse isso aqui, eu e meus filhos passaríamos fome”, observou.

Ao meio- dia, Verônica e Guilherme cumprem a primeira missão e partem para a segunda: convencer o motorista de ônibus a deixá-los entrar com os carrinhos. “Tem motorista que encrenca. Não quer deixar a gente subir”, reclamou a moça.

Jeremias e Silva tem 59 anos e sustenta cinco pessoas em sua família com a ‘feira’ que faz na Ceasa. “Há dez anos venho aqui e pego essa sobra”, contou, enquanto revira uma caçamba de lixo em busca das melhores ‘ofertas’. Ele mora em Vila de Cava. “Levo para a família o que está em ótimas condições e aproveito para levar também o que servirá de ração para minhas galinhas, porcos e bois”, afirmou.

Além dos famintos, um outro grupo de pessoas tem nas sobras da Ceasa sua fonte de sobrevivência: os catadores que recolhem alimentos para vender em comunidades. Às 12 horas de um outro dia de junho, um caminhão tipo baú permanecia estacionado numa plataforma. Os trabalhadores faziam a limpeza do veículo.

De repente, uma chuva de verduras começou a cair pela porta lateral: pés de alface, salsa e cebolinha, espinafre, rúcula e brócolis. “Temos que liberar o veículo, antes de retornar a Teresópolis”, avisou Carlos José Rosa da Silva, de 38 anos, enquanto dez caixas de verduras eram despejadas no fosso.

Em poucos minutos surgiu Zélia de Souza, de 49 nos, que mora em Éden, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, acompanhada por Rhanna Regina, de 15 anos. “Olha Rhanna! Está tudo fresquinho!”, alegrou-se Zélia, que monta uma barraca na porta de casa e vende os alimentos a preços baixos. Sua clientela é a que não pode pagar os valores de mercado.

Falta higiene e sobra sujeira

A falta de observância com regras básicas de higiene, tanto pessoal quanto do espaço, são um capítulo à parte na lastimável história de desperdício diário na Ceasa de Irajá. No pavilhão 21, onde produtores e intermediários expõem as mercadorias e aguardam os compradores, a situação é bizarra. O ambiente é um manancial para a contaminação dos produtos.

Um exército de homens lida com o descarregamento dos caminhões e com o transporte das mercadorias até o veículo dos compradores. Nenhum deles usa vestimenta e calçado adequados para o tipo de trabalho, e muito menos luvas. Nada é exigido deles em termos de regras.

Pior ainda: para economizar tempo, a maioria não interrompe as tarefas para usar o banheiro. Vai ao fosso, junto às rodas dos caminhões, e faz xixi ali mesmo. Depois volta para o seu posto e dá sequência ao serviço. De manhã, quando os caminhões saem e se pode circular na área abaixo da 'pedra', o cheiro de urina é insuportável.

É nesse espaço que uma gente humilde desafia a saúde, em busca da sobrevivência. "Pego o que fica por cima do monte de alimentos e lavo bem quando chego em casa", explicou a viúva Verônica Oliveira. Em dia chuvoso — como a equipe de reportagem pôde testemunhar — a plataforma de cimento, na qual os caixotes com frutas, legumes e verduras são depositados para comercialização, vira um caos. Lama para todos os lados, espalhada pelos pés e pelas duas rodas dos carrinhos empurrados pelos carregadores. Pelo estado de imundície da plataforma, percebe-se que o local não vê água e sabão há muito tempo.

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