Por thiago.antunes

Rio - Minha avó terminara de bater o bolo. Como eu gostava de cozinha, confeitos e coisas de mulheres, não ficava com os meninos. Quietinho, observava aquele universo mágico sentadinho no canto da mesa, braços apoiados sobre o tampo para não cair.

Foi então que Irene raspou com seu gordo dedo a sobra da massa e enfiou na minha boca para eu provar, dizendo: “Quando alguém na escola disser que você dá para estas coisas de balé, que você serve para ser bailarino, você nega, briga, diz que não...”. Eu olhei desolado para a velha senhora, pois o mundo se faria em glória se alguém visse em mim algum talento artístico. Estávamos em lados diametralmente opostos do sonho.

Eu vivia acuado, sem ter adultos para quem eu pudesse contar meu drama. Pois só sobrou a solidão de ser a criança diferente, esquisita. Mas, no fundo, eu desconfiava que não era possível só ter eu daquele jeito, tinham que existir outros! Mais forte que ela tinha meu pai, bradando que mataria se descobrisse um filho veado; que era preferível bandido a gay.

Eu, o que eu sentia, tudo era digno da expulsão, da execração, da morte. Não havia lugar para mim ali, e eu contei as horas, os segundos, para dar as costas eternas para aquela gente. Daí vocês podem imaginar o que significaram meus passos saindo fora daquela casa, aos 19 anos: cada pernada era um alívio, para que a tal normalidade, que eu achava anormal, ficasse para trás.

O que resta para nós, gays, nestas famílias que discursam o ódio contra os humanos que são iguais a nós? A porta da rua é serventia da casa. Pois assim fiz, sem compreender por que eles tinham tanto horror a nós. Se a criança silencia, o que fará o jovem? Embate? Luta física? Drogas? Manicômio?

Hoje com 54, me apiedo de meus parentes iletrados, ignorantes, tentando desesperadamente me fazer outro. E tenho piedade agora porque, ouvindo o estudadíssimo autor de novelas da Globo, percebo que isto vai além de conta bancária, universidades, religiões. Este é um problema humano, da incapacidade de ser um educador libertário, que não veja o educando como continuador exclusivo de seu modelo de mundo.

Fui invadido de extrema piedade pelos netos e bisnetos do Benedito Rui Barbosa, senhor absoluto da criação de universos artísticos, que podem libertar seus espectadores. Ele bradou, como os meus: “Odeio história de bichas; todos na minha família são cabra-macho, graças a Deus!” Pois sei que crianças que ouvem isto estão encurraladas. Se não quisermos ser isto, rumemos para as calçadas e batalhemos do zero, porque eles sempre dizem “não vou te ajudar a ser isto!”. O que faz uma criança que não tem escapatória? Conta o tempo para ir embora daqueles que deveria amar.

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