Por cadu.bruno

Rio - Não sei bem a raça do cachorro que vi passeando com sua dona. Não sei se tem pedigree. Não sei nada da vida de ambos — a mulher e o cachorro. Eu estava correndo quando vi a alegria daquele pequeno cachorro com três patas. Ele saltitava, chamando sua dona para continuar a caminhada. Latia. Reclamava, talvez. Tinha pressa de viver. Tinha vontade de sentir outros cheiros, de encontrar outros companheiros que, por aquela via, também passeavam.

O dia estava bonito. Os dias são bonitos quando estamos bem. Pessoas corriam. Outras caminhavam. Algumas conversavam. Outras ouviam alguma canção. Canções nos remetem a tempos e a pessoas. Histórias que, algum dia, vivemos ou gostaríamos de tê-las vivido. Os pensamentos também correm.
Continuei observando o cachorro, enquanto diminuía o meu ritmo. Encontrou um outro, um pouco maior.

Era fêmea. Ele, macho. Menores possibilidades de disputas, de brigas. Cheiraram-se. Ameaçaram pular um no outro. Brincaram e se despediram, forçosamente, já que os seus donos continuavam a caminhar. Entre os cachorros, nenhum comentário sobre a ausência de uma das patas. A cadela pareceu nem ter reparado. Depois, ainda vi o encontro entre ele e um filhote. Risco menor ainda de alguma contenda. Os cachorros maiores respeitam os filhotes. Há uma lei que não precisou ser escrita e a que todos eles obedecem. Não podem brigar. Podem e devem brincar. Rolaram-se no chão. Abraçaram-se à sua maneira.

Lambidas e partida. E nada de perguntas sobre a ausência da pata. A dona comprou uma água de coco. Dividiu com o seu cachorro, que não cabia em si de tanta gratidão. Olhavam-se com cumplicidade. Sabiam quanto eram importantes um ao outro. O que vi termina aí. O que imaginei foi além.

O cachorro sofreu um acidente? Teve alguma doença? Teve a pata amputada? Nasceu sem uma pata? O que importa? Alguém resolveu cuidar do bichinho. Dar a ele o direito de viver com as patas de que ele dispunha. Passear com ele. Permitir que ele pudesse fazer companhia. Brincar de viver. De viver sem os pesos e sem as responsabilidades das comparações. Quem tem cachorro sabe do que estou falando. É bom chegar em casa e ser recebido com festa. É bom sentir-se importante quando, por exemplo, arrumamos a mala e eles nos olham com olhares que podem significar “De novo? vai viajar novamente? E eu?”

Não se importam se erramos ou acertamos. Se nossos ‘pés de galinha’ já chegaram para ficar, se engordamos um pouco ou se emagrecemos, se o que esperávamos não vai chegar. Não importa se o dia está mais nublado ou se há sol em abundância. Percebem eles nossas tristezas. Certamente. Se, por um lado, eles não se preocupam com as aparências, preocupam-se com os nossos sentimentos. Uma pata a mais ou a menos não merece tanta observação. Uma lágrima que cai merece uma brincadeira surpreendente, um deitar-se pedinte. As carícias que dispensamos a eles nos abastecem de companheirismos.

Alguns criticam que há pessoas que cuidam melhor dos cachorros que dos humanos. Eu discordo. Cada um tem o seu espaço. E, se somos capazes de desenvolver nossa sensibilidade com os animais, faremos o mesmo com maior facilidade com os humanos. O inverso também é verdadeiro. Quem agride um tem maior chance de agredir o outro.

Terminei a corrida. Fiquei com a imagem daquele cãozinho. E de sua alegria. E dos outros que o encontraram e o festejaram do jeito que ele é. E da sua dona. A mulher que com ele dividiu sua água. Ela tinha os pés e as mãos. Mas, certamente, como todos nós, também tinha suas ausências. Definitivamente um dia bonito.

Gabriel Chalita é professor e escritor

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