Era preciso força para compreender a sinceridade de tanto amor. O riso e o abraço eram fáceis de compreender, mas a dor, não
Por tabata.uchoa
Rio - Cantarolava ininterruptamente. Olhava para o seu bichinho, presente de algum outro Natal, e cantarolava. Colocava o bichinho de pelúcia em posição de quem adverte que é bom estar atento à canção. E dançava guiado pelo ritmo que emprestava à sua canção.
Os outros estavam atarefados. Havia conversa e trabalho na cozinha. Palpites e ação. Mudanças de rumo. Pratos que precisavam estar prontos para que a ceia pudesse agradar. Era mais de uma cozinha. Uma tinha fogão a lenha, e outra, a gás.
Na sala, um presépio. Papel comprado em papelaria. Amassado. Tentando ser uma gruta. As personagens, os animais, cada qual no seu espaço. Deixavam apenas de fora o Menino Jesus. Ele deveria chegar à meia-noite. E a Árvore de Natal, montada com badulaques de muitos natais. Tudo ia se acumulando. Algumas crianças, as menores, ainda acreditavam em Papai Noel. Os adultos se dividiam em dizer ou não dizer que quem presenteava eram os pais de verdade.
A verdade é que não paravam. As mulheres ainda tinham horário no salão de beleza. Pés, mãos, cabelo, maquiagem. Os homens cuidavam da bebida. E jogavam prosa, enquanto esperavam.
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Alguns trabalhavam na véspera. E ficavam afoitos para encerrar logo e estar ali. Em família. E ele era imune a todas essas preocupações. Cuidava apenas de cantarolar. Sons mais altos. Sons mais baixos. Risos entremeando as músicas. Não havia dizeres em suas canções. Desconhecia dizeres, o menino cantador. Eram sons apenas. Afinados pelo tempo ou pelo amor de quem os ouvia. Certamente ganharia presente. Mas não havia pedido nada. Não sabia pedir.Apenas olhava. E ria. E cantarolava. Vez ou outra, algum adulto que recebia um telefonema de cumprimentos de algum parente de alguma outra cidade fazia um barulho sério para que ele diminuísse o som. E ele ria. Não fazia cara de aborrecimentos nem de contrariedade. Não sabia o que era isso.
Sabia o que era sorrir. O que era dançar no centro da sala. O que era cantarolar para seu bichinho de pelúcia. O que era abraçar quando quisesse. Ah, abraço ele pedia. Vinha correndo e se jogava. E não era pequeno. Era preciso força para compreender a sinceridade de tanto amor. O riso e o abraço eram fáceis de compreender, mas a dor, não. Via-se apenas que a música cessara e que as lágrimas caíam e caíam. Alguma parte estava doendo. Como saber qual? A cabeça? O estômago? As costas? Os dentes? Como saber? O que fazer para curá-lo? O amor conhecia os seus caminhos. E ele, de novo, estava no centro da sala.
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Preparavam-se para a missa. Ele não iria. Não ficaria quieto sem as suas canções e sua dança durante tanto tempo. Havia uma Rosa que ficaria com ele. Havia Deus, que estaria na missa e também lá naquela sala, contemplando a beleza da Sua criação. Na hora dos presentes, ele haveria de abri-los e, logo depois, olhar e, logo depois, voltar a cantar.
Comeria o que lhe dessem. Sem reclamações. Comeria tudo. E não pediria por mais nada. Apenas que estivessem por ali. Com ele. Ouvindo sua canção. E rindo quando tivessem vontade de rir. Dormiria quando alguém o levasse. Brincaria um pouco mais em sua cama. Olharia com gratidão por compreenderem o que, talvez, ele não pudesse compreender. Abraçaria algum bichinho, algum travesseiro, algum paninho e sonharia com o que não saberíamos traduzir. E, no dia seguinte, levantaria para viver a alegria, novamente. A singela alegria de uma criança que resolveu se eternizar naquele menino.
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Nas brigas entre os outros, apenas olhava. Nos reencontros, olhava também. É como se soubesse, de alguma maneira, que todas aquelas angústias e ansiedades haveriam de ir embora. O seu tempo era todo dedicado à alegria. Nas canções. Nas danças. Na despreocupação com o amanhã. Amava, do seu jeito. Era amado, do nosso jeito.
Um dia, partiu. Cedo demais. Foi cantar em algum lugar preparado pelo milagre do amor. Deve estar cantando e dançando agora, enquanto escrevo e penso nele. Meu irmão, meu irmão Junior, que não passa mais os natais entre nós. Passa, sim. Em algum lugar, passa, sim.