Por bianca.lobianco
Rio - Era uma cidade do interior. No interior, é comum as pessoas se conhecerem. Há menos gente. Menos famílias. É comum, inclusive, a pergunta: “Você é filho de quem?” Nas cidades grandes, dificilmente alguém se arvorará nesse diapasão.  Era uma cidade do interior. No interior das pessoas, sempre há sonhos. E isso é bom.
Foi com um desses sonhos que um homem entrou em um salão de cabeleireiro e foi logo mostrando uma foto. E dizendo sem o menor constrangimento: “Quero que o meu cabelo fique assim.” E deu continuidade ao desejo: “Aliás, quero ficar assim. Igual a esse homem da foto.”
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O dono do salão, com a tesoura e o pente na mão, parou o corte que estava fazendo e, gentilmente, pediu a ele que aguardasse. Que já conversariam. O do sonho disse que aguardaria se ele garantisse que ficaria igual ao homem da foto. O dono olhou novamente para a foto e para o jovem e pediu, mais uma vez, que conversassem depois, que estava terminando um corte de cabelo. O jovem, um pouco menos paciente, disse que se não recebesse a resposta imediatamente iria ao concorrente daquele salão.
Era uma cidade pequena do interior. Dois salões apenas disputavam a clientela. O homem que estava tendo o seu cabelo cortado cochichou com o cabeleireiro: “Diga que vai ficar igualzinho.”
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O cabeleireiro, filho de uma professora conhecida na cidade, um homem reconhecidamente correto, titubeou em dizer o que não acreditava. O homem que estava tendo o seu cabelo cortado continuou o cochicho.
“É melhor você dizer o que ele quer ouvir, não apenas para não perder o cliente, mas para não deixá-lo chateado.” O cabeleireiro, com a tesoura na mão — o pente, ele já havia deixado na mesinha —, ficou ainda mais reflexivo. “Mentir, iludir, para não deixar alguém chateado”, falou consigo mesmo.
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O jovem não entendeu a demora: “Vamos, trata-se de uma pergunta objetiva. Você me deixa com a cara dele ou não?!” “Claro que deixa. Ele faz coisas impossíveis. Pode sentar-se aí e esperar. Você vai ficar igualzinho ao galã da foto.” O cabeleireiro, que era de pouca prosa, pensava com ele mesmo: “Só posso fazer o possível.”
“Então, está bem”, disse o jovem, “vou sentar e esperar”. E, sorrindo, prosseguiu: “Estou muito satisfeito, queria ficar igual a ele e vou ficar.”
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“Vai, sim. Certamente!”, disse, entre sorrisos, o que estava tendo o cabelo cortado.
O cabeleireiro ficou pensando na frase: “Estou muito satisfeito.”
O que é a satisfação? Era evidente que ali só havia mentiras. Do que queria ficar igual e do que dizia que ele ficaria igual. Mas o cabeleireiro não era mentiroso. Não poderia compactuar com aquele jogo. Mas o jovem estava sorridente. Sem a apreensão inicial. É melhor permitir que a mentira persista? Persistirá pouco, entretanto. A não ser que o jovem esteja tão desfigurado das suas sensações que seja capaz de acreditar que, depois de qualquer corte, ficará com uma cara que não tem.
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Pensou o cabeleireiro no tanto que sua vida o ensinara sobre os “sim” e os “não”. Em como é melhor abraçar a verdade a permitir que a mentira abale as nossas relações. O mentiroso sempre tem que mudar de rua. Porque no interior se percebe logo quem mente, e ele tem que fugir o tempo todo. Não. Ele não haveria de mentir.
É bom as pessoas sonharem. Mas há limites. Ter uma cara que não se tem não é um sonho. É uma obsessão. É um desvio. Não, o filho da professora não poderia deixar essa história ir adiante.
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O jovem, então, se levantou, enquanto o cabeleireiro terminava o corte do cabelo do que tanto disse naquela tarde.
O jovem olhou. Olhou novamente. De um lado. De outro lado. E decidiu. “Mudei de ideia. Quero ficar com a cara dele. Dá para cortar o meu cabelo igual ao dele?” Antes de qualquer intervenção, o cabeleireiro soltou: “Vou fazer o possível.” “Vai fazer o possível?! Ele disse que você faria o impossível. Não. Eu vou ao outro salão. Não fico aqui nem mais um minuto!”
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O cabeleireiro suspirou aliviado. O que estava tendo o cabelo cortado o repreendeu: “Era tão simples, ele só queria que você falasse o que ele queria ouvir.”
Nisso, entrou a mãe do cabeleireiro com duas amigas. Deu um beijo no filho. Cheia de orgulho. O filho olhou para a mãe, para as amigas, para o homem que o repreendeu e agora estava saindo, para os outros clientes que estavam ali e agradeceu de viver no interior e de ouvir o seu interior. Sonhos quase sempre fazem bem.Quase sempre.
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A tarde já ia embora. Ele teve tempo de olhar o sol se despedindo. Sempre gostou de ver as montanhas do vale. Tenta aprender com a natureza para compreender as pessoas. Faz o possível.
Gabriel Chalita, professor e escritor
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