Ionara Rabello - MSF / Divulgação
Ionara RabelloMSF / Divulgação
Por Ionara Rabello Psicóloga

Rio - Acordar, tomar café, organizar a casa, ir para o trabalho ou a escola. Essa rotina, tão familiar a todos nós, brasileiros, é o sonho de milhares de famílias que neste momento fogem de países em guerra.

A decisão de fugir pode ser tomada após rumores de que grupos rivais estejam se aproximando de sua cidade, trazendo com eles assassinatos, chacinas, sequestros e estupros de mulheres e crianças e desencadeando uma incontrolável sensação de desespero. Outras vezes, é o som de aviões se aproximando, e todos precisam correr, porque possivelmente sua cidade será bombardeada naquele minuto. Na calada da noite, quando cansados de tanto esperar pelo perigo do dia, o sono e sonhos são interrompidos por choro, ansiedade e medo da morte.

Perigo, medo, morte e desespero são palavras constantes entre refugiados atendidos por Médicos Sem Fronteiras (MSF) em várias partes do mundo. Relatam a violência extrema a que eles e seus familiares foram submetidos. Contam-nos como passaram anos fugindo de um lado para o outro, dentro do próprio país, até que não existia mais água, comida, casa, trabalho. Ou seja, já não restava a esperança de que algum dia tudo iria voltar ao normal.

A decisão de juntar os familiares que podem caminhar e colocar toda a vida em mochilas que possam ser carregadas por dias ou meses não é tomada de um dia para outro. Não é como escolher viajar de férias ou planejar uma visita a outro país. É fruto do desespero absoluto e da certeza de que você e sua família serão os próximos a morrer se continuarem naquele lugar.

Os riscos enfrentados nas rotas de refugiados são equiparados aos riscos de permanecer no país de origem. Durante sua jornada, sofrem extorsões, são assassinados, estuprados, enviados em barcos sem as mínimas condições de navegação, e muitos morrem neste trajeto. A escolha quase recai sobre esperar pela morte no próprio país ou arriscar a vida numa rota repleta de perigos.

De acordo com dados divulgados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) nesta semana, quando comemoramos o Dia do Refugiado, existem 68,5 milhões de pessoas deslocadas no mundo, fugindo de conflitos e perseguições por questões de raça, religião ou nacionalidade. Grande parte deles acaba permanecendo nas proximidades de seu país e uma minoria se arrisca a ir para outros continentes, como por exemplo, a Europa. Um dado que pode surpreender é que não são os países desenvolvidos do norte rico que absorvem o maior número de refugiados, mas as nações em desenvolvimento.

Seja por terra ou mar, MSF é uma organização que tem por princípio salvar vidas, não importa a crença, raça, nacionalidade. Nossas equipes estão em vários campos de refugiados, rotas migratórias, centros de detenção para migrantes e navios de resgate. MSF oferece ajuda humanitária, percorre as rotas de refugiados em várias direções, monta postos de saúde e relembra a todos que todas as vidas importam.

Quando nos colocamos diante de famílias ou pessoas que buscam refúgio em outros países, algumas características se destacam. A voz é rouca, pela poeira do caminho, porque foi tão exigida para pedir ajuda em alto mar ou porque faltam palavras para descrever o que se passou no caminho. As faces são marcadas por sol e tristeza, o andar é arrastado por dias de caminhada. Os olhos quase não brilham depois de anos ou meses vivendo em barracas improvisadas. A alma quase não sonha diante da desesperança.

Ser refugiado é carregar todos os abandonos de uma vez só. E hoje, como mostram os incidentes recentes no Mediterrâneo, é carregar mais um fardo, o de ter sua própria humanidade sequestrada pelo jogo político que troca vidas por votos, e culpabiliza as vítimas por estar naquela situação.

Ionara Rabello é psicóloga e vice-presidente do CA do MSF Brasil

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