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Por Ricardo Cravo Albin Pres. do Instituto Cultural Cravo Albin

Millôr Fernandes certa vez me soprou frase lapidar: "o pior não é o papel em branco frente à máquina de escrever. Pior mesmo é a superposição do branco do papel com o branco da cabeça, cujas ideias são sem cor alguma. Ou seja, o branco vira preto que vira coisa nenhuma ".

Hoje, o meu possível branco está coloridíssimo. Pensava em escrever sobre os 90 anos de Cândido Mendes, celebrados pela Academia Carioca dentro da reitoria da Universidade Cândido Mendes, em grande estilo, há dias. Também pretendia me debruçar sobre as dramáticas denúncias de editores lastimando a situação dos livros no Brasil, logo eles, nossa afirmação como animais pensantes. Assuntos quentes, sim. Mas que ficam adiados pelo aparecimento de um Almanaque, também livro, um afago certeiro à nossa cidade. O ato de louvar-se o Rio em originalíssimo (e raro) Almanaque não deixa de ser a possibilidade de uma convergência, o encanto sutil e imemorial de um amontoado de feitiços.

Certa vez, lá pelos anos 1960, em domingo plúmbeo, fui almoçar com Vinicius de Moraes no barraco de Cartola ao sopé da Mangueira. Mergulhei em mesa farta, coroada com a mitológica carne assada da Zica, preparada com arte e apuro ao molho madeira. Ao final da amabilíssima degustação, o poeta empertigou-se e, quase solene, proclamou "estou na Mangueira, ouvindo Cartola, o poeta carioca, comendo a melhor iguaria do mundo, bebendo da pinga mais cheirosa, e recebendo a hospitalidade mais doce e sincera. É claro que esta chuva lá fora é puro sol. As estrelas vão brilhar, e vai raiar uma lua cheia daqui a pouco...".

Vinicius de Moraes acabara de cunhar ali, na soleira do barracão de Cartola e Zica no Morro da Mangueira, à boca da noite, a definição mais eloquente e inamovível da magia da cidade de São Sebastião.

Este almanaque, tramado pela coragem de Luiz Cesar Faro, desvela o espírito do Rio, acimentado pela matéria-prima mais vigorosa, os muitos de seus sortilégios. Que brotam torrenciais por todos os poros dos cariocas que amam a cidade. Sim, porque os há de mentira, incapazes de conviver com a essência exalada pela miscigenação, pela mulatice, pela malemolência dos muitos bairros e dos muitos esconderijos sensuais, que a recuperam dos malfeitos e da inadmissível violência.

Este livro, sim, um Livro-Almanaque, se acode das miudezas e dos detalhes aparentemente banais, mas singularíssimos para o acolhimento exato do que é a entidade chamada "espírito carioca". Nosso Almanaque, de que o Instituto Cultural Cravo Albin tanto se orgulha já na segunda edição de fim de ano, será capaz de alimentar a frase imortal do Barão de Itararé, nos anos 1920 do século passado - "ora, ora, se existem bons almanaques, que se rasguem os jornais, que se descartem alguns livros inócuos. Só um Almanaque feito com apuros desvela segredos, e agiliza a felicidade da leitura". Sábio, o nosso Itararé...

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