Era só uma imagem. Atrás, porém, daquela foto na tela do computador, havia uma pessoa de carne e osso. O pano carmim vivo que envolvia o rosto da jovem mulher contrastava com o olhar opaco e perdido no vazio, enquanto as mãos da moça acomodavam um bebê que se esparramava no colo dela. Era só uma imagem impactante, publicada no site de Médicos Sem Fronteiras (MSF), mas é também a história de Rohima Khatum, uma jovem de 25 anos que fugiu para Bangladesh, depois de perder o marido e um filho pequeno para a violência contra a sua etnia rohingya em Myanmar, país natal.
A história não é muito diferente da de outros milhões, que ganham voz e corpo em relatos surpreendentes nas páginas de MSF. A organização trabalha com a estimativa de que haja cerca de 25 milhões de refugiados no mundo, sendo metade deles menores de 18 anos. O destino de todo esse contingente costuma ser países em desenvolvimento (em geral, fronteiriços) em 85% dos casos. As pessoas forçadas a se deslocarem dentro do próprio país já totalizam 40 milhões.
Por inúmeros motivos, esses migrantes preferem arriscar sua integridade, a própria vida e a vida dos filhos do que permanecer no local de origem. Ainda assim, com todas essas histórias e números, as iniciativas anti-imigração avolumam-se.
A presidente internacional de MSF, Joanne Liu, argumentou no discurso que fez no dia 11, durante reunião do Pacto Global sobre Migrações, no Marrocos, que políticas para deter a migração não impedem as pessoas de se deslocarem: "Essas políticas dão força a autoridades corruptas e gangues criminosas que lucram com a vulnerabilidade das pessoas. Essas políticas criminalizam e jogam as pessoas vulneráveis nas mãos daqueles que as exploram implacavelmente".
São, literalmente, políticas que matam pessoas.
Um dos exemplos mais recentes é o fim das atividades do Aquarius, embarcação de busca e salvamento de MSF e SOS Mediterranée que atuava no Mediterrâneo. Nas últimas semanas o navio foi forçado a encerrar as atividades após uma campanha europeia anti-imigração, liderada pela Itália. Foram salvas cerca de 30 mil pessoas desde fevereiro de 2016. Juntamente com outros navios anteriores de MSF, a organização ajudou 80 mil pessoas no Mediterrâneo desde 2015.
Apesar do Aquarius, outras 2.300 pessoas perderam a vida no mesmo mar só neste ano. Semana passada, por exemplo, 15 pessoas dentro de um bote inflável ao largo da costa da Líbia morreram de sede e fome.
Seja na África, América Latina ou Bangladesh, a ajuda médico-humanitária vem testemunhando a barbárie infligida a pessoas que estão presas no limbo legal da migração e, por isso, sofrem qual mercadoria na mão de traficantes.
"Salvar vidas não é negociável. Salvar vidas é o que fazemos, é o motivo pelo qual continuaremos lutando", reforçou Liu no discurso.
O Pacto Global sobre Migrações baseia-se nas responsabilidades existentes, que proíbem o tratamento de pessoas como mercadoria em qualquer situação e lugar. Independentemente da razão de as pessoas deixarem sua origem, elas precisam de proteção.
Salvar vidas não é crime. Médicos Sem Fronteiras não deveria enfrentar obstáculos legais para ajudar quem necessita. Reduzir o sofrimento de outrem faz parte daquilo que nos torna humanos. E é por isso que os profissionais da organização também testemunham esse mesmo gesto vindo de pessoas comuns que abrem as portas de casa, organizam cozinhas comunitárias e autoridades locais que oferecem apoio a quem se agarra a um raio de esperança após viver o drama de um deslocamento forçado. Se é possível um apelo, Joanne Liu o faz ao mundo todo: "apoie as políticas humanas". Vidas dependem disso.
(* Assessora de imprensa da MSF-Brasil)