- Arte: O Dia
Arte: O Dia
Por Fábio Fabato Jornalista e escritor

Rio - Existiu um tempo para lá de antigo de Praça Seca, um dos tesouros ancestrais de Jacarepaguá, muito tranquila. A rotina acontecia em torno do coreto, as pessoas se conheciam pelo nome, o bloco Araruta descia entoando a plenos pulmões sua rima com palavrão impublicável. Mas tudo era ingênuo, inclusive, os gritos de guerra dos foliões. A vida batia pernas exatamente no compasso do relógio, bem antes das parafernálias eletrônicas contemporâneas. E havia espaço para histórias malucas - e reais - que perfumam ótimas lembranças.

Eu morava à Rua Baronesa, 1889 - pertinho de algo que na segunda metade do século passado gerava fuzuê por todo o Rio: a mansão do industrial (assim o definiam, por eufemismo) Armindo da Fonseca. Falando de tal modo, nome e sobrenome, parece sinopse e personagem de dramalhão do passado. Mas é tudo verdade. E não se tratava de mansão qualquer, mas d'um autêntico parque temático de 20 mil metros quadrados, que varria três ruas do bairro: a citada Baronesa, a Japurá e a Barão, para onde davam os portões de ferro alegóricos daquela fortaleza inacreditável.

O delírio caipira de transportar Hollywood para Jacarepaguá - o local foi cenário de dois filmes, novela da Globo e era aberto à visitação - fazia a festa da região e, de Armindo, espécie de mito local. Vê-lo saracoteando pela praça tinha ares de encontro com um híbrido de Clark Gable, Assis Chateaubriand e Castor de Andrade.

A piscina imitava um piano de cauda. A sauna, um navio. O paraíso estilo Beto Carrero seminal, ornamentado com plantas raras, trazia também um grande lago que recebia água diretamente de nascente do próprio terreno. Além de cisnes e garças, a joia lacustre de Armindo inda era habitada por cerca de mil irerês (espécie de marreco d'água), que, por capricho, não repousavam às noites na residência. Todo fim de tarde, os danados migravam para lugar ignorado e, durante a madrugada, regressavam aos bandos. Bucólico, não? Mas a estrela da companhia daquele zoo, Jardim Botânico ou Estúdios Disney tinha nome e realeza: Leo, o leão.

Sim, o homem possuía um leão dentro casa, papo para deixar os profissionais do Ibama mais do que ouriçados. Afinal, Armindo e Dona Dina da Fonseca promoviam históricas festas juninas, que congestionavam da Rua Barão até Vila Valqueire, com reflexo nos arredores de Madureira. Existia ainda clubinho interno, com nababesca sede nos fundos do terreno: o Clube dos Amigos de Armindo da Fonseca, que organizava quadrilha de roça - acontecimento esperado ansiosamente por muitos cariocas o ano inteirinho. Conseguem imaginar o estresse do leão Leo com tamanho furdunço?

O bicho morava numa jaula não muito católica e, transtornado com toda a sua situação de peça decorativa de milionário, costumava apontar a pistola para as visitas - mirando-nos em apoteóticos xixis, sem qualquer cerimônia. Seus rugidos ecoavam pela ladeira da Japurá, sendo ouvidos - fazem crer os antigos - no alto do morro São José. Parecia que a Praça Seca viria abaixo quando o rei daquela selva árcade se metia a tenor.

Hoje, infelizmente, o barulho é dos tiros: a violência dá o tom na região. Na última guerra entre milicianos e traficantes, uma moradora, que preferiu não se identificar, disse aos jornais: "Esse é um bairro pobre e ninguém nem se lembra de que existe. Vivemos à mercê das balas". E por isso mesmo gritam alto as boas saudades - da airosa pracinha, dos bailes no Jacarepaguá Tênis Clube, onde até Roberto Carlos fez show, da casinha cheirando a comida caseira dos saudosos Dona Lêda e Comandante Evandro (Rua Pedro Telles, 595, 29), ponto de encontro da juventude (hoje com os cabelos ralos) fundadora da Tribo do Araruta, da Irmã Oliveira e sua Escola Padre Butinhá. E da mansão que não mais existe: virou conjunto de prédios.

A agridoce história do pobre Leo, do rico Armindo (nem mesmo o realismo fantástico de García Márquez e Dias Gomes ousaria comportar) flerta com a própria alma de uma sufocada cidade, de pureza também nos desatinos, e que parece não voltar mais.

Fábio Fabato é jornalista e escritor

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