opina2212 - arte o dia
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Por Gabriel Chalita*
Estou um pouco perdido no tempo, mas sei que é quase natal. Há movimentos que rasgam a rotina dos dias. Eles gostam de nos dar o que não temos. Ao menos, no natal.

Não. Não posso ser injusto. Sou bem tratado aqui. E sempre há alguém para preencher o que nos falta. Falta em mim a memória necessária para contar quem vem. Esqueço nomes e me confundo em perguntas, cujas respostas já me foram tantas vezes dadas. Coleciono alguns medos antigos e outros que foram chegando e se aninhando em mim. Tenho medo de chuva. E não tinha. Tenho medo da noite. E da noite gostava, quando saía acompanhado ou quando buscava, nos dias de alma fria, algum aconchego. Tenho medo das quedas. Que bobagem! Caí tantas vezes e me limpei e prossegui. Mas hoje é diferente. A memória me falta e, então, não posso explicar. Tenho um filho, apenas. Devia ter tido mais. Ou não. Não sei. O que mora no ontem, no ontem mora, e já não podemos mudar.

Na casa do meu passado, vivia uma mulher linda e um filho cheio de tudo. E dias felizes. Como tive pouco, porque meus pais pouco tinham para me dar, dei em exageros ao meu filho. Bastava um desejo, e eu estava ali para resolver. Na minha infância, era um brinquedo de natal, apenas. Na dele, era uma vastidão de embrulhos para serem abertos e desprezados. Nada o satisfazia. Queria mais. E assim eu atendia. Minha mulher dizia que eu o educava mal. Mas era meu único filho. Eu queria que nada faltasse. Eu queria que ele fosse o mais feliz dos homens. Eu queria tanto. E ele queria tão pouco, foi o que me disse em uma das últimas vezes que esteve por aqui. Não me lembro de tudo. Lembro que ele pediu que eu parasse de pedir que ligassem. Que nada estava me faltando. E se foi, sem beijos. Eu o beijava tanto. Dizia dele aos meus, que era meu orgulho, que era meu príncipe, que era o melhor nisso e naquilo. E ele se fez homem. E tem seus filhos. Dois. Que também nunca vêm. Eu tenho as fotos.

Tive doenças que me fizeram incapaz de controlar a mim mesmo. Foi quando ele decidiu que era melhor eu viver aqui. Eu concordei. Estava frágil demais para comandar o dia. Assinei o que ele me pediu. Era melhor que ele administrasse tudo. Tudo o que eu construí com anos de entrega. Fui da escassez ao exagero. Da casa simples dos primeiros anos de amor com minha mulher a uma mansão cheia de tudo para que meu filho fosse feliz. Entendia nada de felicidade naquele tempo. Viajou para longe de mim o menino que eduquei com erros. Aprendi rasgado que não se deve dizer “sim” aos luxos desnecessários. Sementes não jorram de mãos enluvadas. É preciso o calo dos plantadores para que os jardins floresçam dignidade. Sem esforço, não há flor nem fruto, nem beleza nem alimento.

Meu filho é um homem que gosta de dar ordens. E que me culpa por pecados que ele decidiu. A mãe morreu pouco antes das minhas recentes fragilidades. Não sei quanto tempo faz, exatamente. Nem sei se tudo o que eu digo é como realmente foi. Sei que tenho saudade.

Ontem, um jovem que nos visita e a quem sempre eu pergunto o nome, me perguntou sobre um presente de natal. Eu respondi, "Meu filho!". Ele tocou as minhas mãos e sorriu com os olhos. "Que meu filho venha me ver, que meu filho me dê um beijo, que meu filho diga que me ama". O jovem nada disse. Decerto vai ligar para o meu filho. Decerto, se meu filho vier, será para me repreender. De certo, eu não sei nada. Só sei que não vivo na casa dos meus sonhos. Nem na mansão nem na pequena casa dos inícios onde minha mulher e eu sentávamos no chão e montávamos uma desequilibrada árvore cheia de simplicidades para o natal, e um presépio de papel “alguma coisa”, não lembro o nome. E fazíamos amor no chão. Jovens que éramos.

Meu filho não viveu essas delícias. Talvez eu seja o culpado. No seu tempo, era tudo arranjado para que nada faltasse. Faltou uma canção desafinada, faltou um bolo um pouco queimado, faltou um brinquedo só. Eu não sei. Sobre os erros, só se sabe depois. Difícil escolha a de viver. Quem foi que inventou a liberdade? De acúmulos em acúmulos, foi percebendo o que falta. Nesses tempos de despedidas, as lembranças que me preenchem não são de coisas, são de pessoas, são de momentos, são de sabores. Que sabor tem uma vida sem amor? Por que minha mulher ficou doente e se foi? Se ao menos estivéssemos juntos, esse canto em que me sento seria encantado. E faríamos amor novamente. Nem que fosse com os olhos.

Estou um pouco perdido em mim. Tenho esquecimentos e lembranças. Que se revezam. O que permanece sempre é a saudade, acho que já disse isso. Se eu pudesse voltar, eu não impediria as frutas de amadurecerem sozinhas. De correrem os riscos necessários. De caírem e permanecerem intactas ou com algum arranhão, por que não?

Quem sabe meu filho leia os meus pensamentos e me perdoe os erros e venha me ver no natal. Sempre acreditei em milagre.
*Gabriel Chalita é professor e escritor