Myrna Brandão - Divulgação
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Por Myrna Brandão*
“Fazer a mesma coisa muitas vezes cansa o corpo e a alma”.

A frase acima, dita por um personagem no documentário “Indústria Americana”, de Steven Bognar e Julia Reichert, impacta os espectadores, tanto como pessoas quanto como profissionais, principalmente os da área de Recursos Humanos. Primeira produção da empresa Higher Ground – criada por Barack e Michelle Obama – o filme deu a Steven e Julia o prêmio de direção no Festival de Sundance e dificilmente eles deixarão de ganhar o Oscar/2020 de melhor documentário.

A origem da história remonta a 2008 quando uma fábrica de automóveis da General Motors em Dayton (Ohio) foi fechada. Entre as testemunhas de suas horas finais estavam os dois diretores filmando e entrevistando alguns trabalhadores que, por sua vez, haviam conseguido capturar imagens dos últimos carros rolando na linha de montagem. Isso gerou o curta-metragem “O Último Caminhão: Fechamento de uma Fábrica GM” – 2009, que foi indicado ao Oscar daquele ano.

Ambientado ainda nesse ano, o filme mostra o frio intenso tomando conta de Dayton, o ambiente gélido somando-se ao fechamento da fábrica. Logo após, o roteiro faz uma elipse temporal de oito anos para o futuro. Surge então na tela o título – tanto em inglês quanto em mandarim. Esses primeiros cinco minutos – uma decisão acertada dos diretores – são um resumo de tudo que está por vir.

O fechamento não foi o fim da história da fábrica. Alguns anos depois, ela foi comprada e reaberta por Cao Dewang, um bilionário chinês. Mas, como é demonstrado no documentário, não foi um fim feliz. O ano agora é 2010 quando ocorre um êxodo de capital chinês para o ocidente, prometendo mudar toda a economia da região. Um dos exemplos dessa migração é justamente a compra do local que sediava a citada fábrica de carros norte-americana. Cinco anos depois em 2015, o espaço é transformado em uma filial da empresa chinesa Fuyao, fabricante de vidros.

Com total acesso às dependências da Fuyao Glass America, os diretores do documentário, além de apresentarem aspectos da difícil integração sino-americana e o inevitável choque cultural, mostram a exploração exercida pela empresa sobre seus funcionários. Se no início, estavam esperançosos e gratos pela empresa chinesa investir no local, recuperando parte dos empregos perdidos anteriormente, pouco a pouco começam a sentir as condições perversas e estressantes a que estavam sendo submetidos.

O filme vai descortinando para os espectadores, os males da “experiência” econômica e social da fábrica americana controlada pelos chineses. A primeira metade é um pouco mais suave, algumas cenas parecem quase uma espécie de subproduto do “The Office”. Pouco a pouco o filme começa a endurecer, mostrando inclusive como os trabalhadores pró-sindicatos estão sendo alvo da gerência apenas por ousarem falar.
Quando os executivos americanos da Fuyao viajam à China para conhecer a matriz da empresa, ficam estarrecidos com a forma como os funcionários obedecem cegamente as ordens, além de trabalharem em turnos de 12 horas por dia. Uma cena mostra os empregados da fábrica chinesa organizados em uma fila e, praticamente como robôs, abandonando seus nomes por uma numeração fixa.

Ainda que a dupla de diretores dê o devido espaço para o ponto de vista dos patrões, o foco visivelmente está na classe trabalhadora. Na filmagem de um superior discursando, a câmera, ao invés de focá-lo, passeia nos rostos humanos dos trabalhadores e suas reações. Além disso, utilizam a técnica do “voice-over” para dramatizar o ponto de vista dos empregados.

Por sinal, outro acerto da dramaturgia é a relação espectadores / trabalhadores. Quando o filme vai aos ambientes familiares, induz os espectadores a verem os trabalhadores não apenas como empregados, mas também e principalmente como seres humanos.
É um filme importante e que certamente ainda provocará muitas reflexões e pontos para debate. Poderíamos até imaginar os diretores, daqui a alguns anos, retornando à fábrica para concluir sua trilogia (o curta-metragem de 2009, este “Indústria Americana” e o próximo.

Por outro lado, no entanto e considerando as assustadoras implicações para o futuro nas cenas finais, uma pergunta não quer calar. Será que a realidade cruel da industrialização desenfreada do trabalho, exposta por Charles Chaplin no seu antológico “Tempos Modernos” em 1936, corre o risco de voltar?
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*Myrna Brandão é diretora da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio de Janeiro (ABRH-RJ)