Eu ia a lado nenhum. Eu queria voltar no tempo e curar aquele dia. Eu queria gritar aos céus. Minha mulher foi ao chão e apertou a barriga como se perguntasse ao útero as razões de ter que enterrar o seu fruto. Nos olhamos nada, enquanto caminhávamos com ele pela última vez. O solitário cemitério e os seus barulhos de mistério. Voltamos para casa.
Os dias que se seguiram foram cinzas. Não havia sol que nos despertasse para o viver. Maurício sofreu também. Pelo irmão e por nós. Será que falhei nesse tempo? Será que, ao deixar de esperançar por belezas, fui pintando uma vida rude para minha família? De tristezas, éramos ricos. E só.
O tempo foi trazendo alguns anúncios. Os sentimentos não deixaram a dor, mas experimentaram dias bons. Disfarçar a falta de alguém não era possível, mas havia canto e havia primavera.Rosas pequenas desconheciam a dor e nos acordavam.
Maurício foi nos trazendo apreensão. Passou dos silêncios em seu quarto para o barulho nas exigências. O menino virou homem sem virar. Grandalhão, nos foi colocando ameaças. Outra dor para minha mulher. Outra dor para mim.
Internamos nosso filho mais de uma vez para tratar das drogas. Droga de escolha. Droga de entrega. Solange olhava para mim como se a culpa fosse minha. Na dor do filho que se foi, eu disse apenas "sim" ao filho que ficou. Fiz todas as suas vontades. Dei o que não tinha. Era ele o que eu tinha. E, agora, ele nos olha com olhos caídos de desarrumação. E nos fala como se fala com quem não se tem amor.
Estávamos em casa nos olhando, em silêncio, depois de um jantar com pouco apetite. E ele chegou. Grande e inquieto. Pequeno da cabeça. Vasculhando o que haveria de exigir. Disse "boa noite". Respondemos. Pediu dinheiro. Já havíamos conversado sobre isso. Recusei. Pedi que se sentasse. Que deixasse o desejo sucumbir diante da noite que estava agradável. Ofereci meu colo e falei de como era bom estarmos juntos. Ele olhou com olhos de nada. Entrou na cozinha e voltou com uma faca. Solange gritou. Eu observei. Pensei que ele nos atacaria. Já fez isso em outras crises, mas não com faca. Dessa vez, foi pior. Colocou a faca no próprio pescoço e ameaçou rasgar a sua vida, se eu não desse a ele dinheiro para comprar drogas.
O que deve um pai fazer em noites assim? O seu transtorno era o anúncio de que o impossível poderia não ser. Solange gritou dizendo para que eu desse logo o que ele estava pedindo . Que não aguentaria um outro fim. Que era o melhor a se fazer.
Maurício acenava com a cabeça concordando. A faca ainda estava em mãos ameaçadoras. Tudo o que me restava estava em convulsão. Ouvi um som de silêncio dentro de mim. Aproximei-me do meu filho com o cuidado necessário para que ninguém saísse rasgado. Minha alma estava rasgada. Com a delicadeza de um pai, toquei no seu rosto e enxuguei o seu medo. Chorei com ele, enquanto a mão da ameaça começou a descansar. Disse que, se necessário, daria o dinheiro. Que, antes disso, pediria apenas que ele se sentasse. Que eu pudesse deitar no seu colo. Que meu dia havia sido triste. Que eu precisava dele para acalmar a vergonha de ter sido demitido. Que eu era fraco. Que nunca tinha sido um bom pai. Que fui um marido trancado em uma dor profunda incapaz de trazer a vida à vida tão sofrida da minha mulher.
Ele deixou a faca cair e me abraçou. Nos nossos choros, encontramos alguma paz. Não sou ingênuo. Seu vício não dará tréguas tão facilmente. Mas foi o que eu consegui naquela noite. Com a minha fragilidade, despertei nele algum desejo de cuidado.
Solange ficou nos olhando. Aquele homem menino sentado e eu com a cabeça em seu colo. Ele me dizendo que eu arrumaria um outro emprego, que ele haveria de me ajudar, que tudo iria ficar bem.
Olhei pelo verão que entrava pela janela. Um calor bom nos aqueceu naquela noite. Ele disse que estava com fome. Eu sugeri que jantássemos novamente, agora com apetite. Solange concordou. Nos levantamos e fomos juntos preparar e comer algum futuro.
Como será o dia de amanhã? Calma. Houve uma trégua no desfecho da noite. E não se pode desperdiçar instantes de paz...