Pedro Serrano Divulgação

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Pedro Estevam Serrano*
Embora, no cômputo geral, o saldo do trabalho da CPI até o momento seja positivo, tendo obtido depoimentos de testemunhas e provas documentais muito relevantes para que se desvende como engendrou-se a política nefasta e criminosa do governo federal durante a pandemia, há um aspecto que precisa ser debatido com atenção.
Os parlamentares, na função de inquisidores, têm se equivocado na forma de lidar com os direitos dos investigados, sobretudo, o direito ao silêncio. Goste-se ou não, trata-se de um direito assegurado pela nossa Constituição e que tem um fundamento importantíssimo – o da não autoincriminação, ou seja, o direito da pessoa de não produzir provas contra si mesma.
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Mais do que isso, como bem observou a advogada criminalista Dora Cavalcanti, em artigo publicado recentemente, por mais frustrante que possa parecer o silêncio de um acusado frente à busca por se conhecer algo que é de interesse coletivo, esse direito está relacionado à proibição da tortura como método de investigação. Um método que, como nos mostra a história, foi adotado desde os tempos mais remotos.
É natural que o investigador queira obter diretamente do investigado informações sobre um crime que ele supostamente praticou. Também é natural que aquele que investiga componha uma hipótese de materialidade e de autoria sobre o delito. O que não se pode é esperar que o acusado comprove a hipótese e empreender qualquer recurso com essa finalidade.
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Há um certo amadorismo na crença de que ouvir o investigado é o caminho para se obter a verdade. Nem mesmo um método torpe como a tortura pode garantir esse resultado. As ditaduras produziram sessões tenebrosas contra torturados que, mesmo sob os mais cruéis castigos, se negaram a entregar seus companheiros.
É importante ressaltar que a legislação brasileira não prevê crime de perjúrio. O investigado não é obrigado a se autoincriminar, o que a jurisprudência corretamente entende como não ser obrigado a dizer a verdade.
Já em países como os Estados Unidos, o investigado é obrigado a falar a verdade. Apelando à conhecida 5ª emenda, ele pode apenas reivindicar o direito de se calar quando perguntado sobre algo que o incrimine, mas não pode mentir.
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O fato é que o direito ao silêncio é uma espécie de vacina contra o abuso, que se consagrou em todas as democracias do mundo como um direito humano e fundamental, ainda que com extensões diferentes.
Nesse contexto da CPI, mais preocupantes do que a postura dos senadores têm sido algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), como, por exemplo, a que obriga o depoente a falar quando se tratar de crimes cometidos por terceiros, o que pode, de acordo com a estratégia de interrogatório, levá-lo, indiretamente, à autoincriminação.
O que diz a Constituição é que o investigado tem o direito de ficar calado diante de qualquer questionamento feito pelas autoridades – e não diante desse ou daquele.
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Ao decidir dessa forma, o Supremo restringe indevidamente esse direito constitucional, o que é muito grave, pois isso gerará uma jurisprudência que afetará toda a sociedade, em especial, os segmentos mais vulneráveis.
Quem decide o que deve ou não ser falado e respondido, quem decide sobre usar o direito ao silêncio ou não é a defesa; nunca a autoridade. Além disso, esse tipo de abuso tende a transformar a CPI num circo, o que depõe contra a seriedade da comissão como instrumento de investigação.
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*É Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na graduação , mestrado e doutorado da PUC/SP, sócio do escritório "Serrano, Hideo e Medeiros Advogados