João Batista DamascenoDivulgação

Quem não conhecia o deputado Glauber Braga, até o dia no qual o ex-juiz Sergio Moro foi prestar depoimento numa comissão na Câmara dos Deputados, se espantou com um jovem parlamentar desassombrado que, sem cerimônia, chamou o então ministro de “juiz ladrão”. Inteligentemente, sem fazer qualquer referência a crime contra o patrimônio, o deputado fez uma comparação com o árbitro de futebol que, dolosamente, favorece a vitória de um dos times do qual, em momento posterior ao campeonato, se torna técnico.
O deputado protagonizou mais um papel compatível com quem tem responsabilidade com a civilidade e com o Estado de Direito. Embora seja de campo político diverso da ex-deputada Flordelis, votou contra a sua cassação. As bancadas “da bala”, “do boi” e “da bíblia” abandonaram a deputada e votaram pela sua cassação.
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Diante da polêmica instaurada, o deputado foi às redes explicitar o seu posicionamento e disse: “Flordelis matou? Não sei. O júri vai avaliar. Sabia da controvérsia, mas achei que seria incoerência minha cassar mandato antes de julgamento e dizer que defendo agenda antipunitivista”. E disse mais: “O argumento que será utilizado é que neste caso a avaliação era sobre quebra de decoro. Não vi os elementos comprovados (a dúvida já é motivo pra não votar Sim)”.
Sem temor das consequências do seu coerente voto, o deputado disse que se votasse pela cassação da deputada teria gerado “menos desgaste”, mas ponderou que não se sentiria bem com isso. “Me sentiria covarde por estar caminhando contra as minhas convicções”, declarou.
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Assim como o deputado, eu tenho me espantado com as condenações antes dos julgamentos. A prática tem relembrado a frase da rainha louca do Castelo de Cartas no conto ‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carroll: “Cortem a cabeça! Primeiro a sentença, depois o julgamento”.
A mídia acusa, julga, condena e executa. E as instituições que deveriam garantir os direitos individuais contra a sanha da multidão ratificam o veredito midiático. É espantosa a prática de publicidade opressiva na mídia brasileira. Os erros cometidos no caso da Escola Base não nos ensinaram muita coisa.
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No último dia 11 de agosto comemoramos o Dia do Advogado e dos Magistrados. Foi também o 10º aniversário do assassinato da juíza Patrícia Acioli, com 21 tiros disparados por policiais militares, com armas e munição do Estado. Até hoje os oficiais condenados por participarem do atentado à Justiça estão nos quadros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, recebendo regularmente seus salários.
Vivemos um paradoxo. Qualquer cidadão que queira ser candidato a cargo eletivo precisa ter a “ficha limpa”. Uma condenação civil em ação civil pública, em segunda instância, mesmo que não seja desabonadora, pode gerar a inelegibilidade. Um ex-presidente foi impedido de concorrer a uma eleição e permaneceu 580 dias encarcerado sem sentença transitada em julgado. Um deputado, membro de poder, pode ser cassado por mera alegação de falta de decoro parlamentar, seja lá o que isto for, independentemente da existência de condenação em qualquer instância.
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Um magistrado pode ser afastado por mera notícia de jornal, sem fonte explicitada, dependendo do humor dos órgãos disciplinares do judiciário. Mas oficiais do aparato armado do Estado somente perdem o cargo em decorrência de sentença transitada em julgado, mesmo que matem uma juíza que lhes dificulte a escalada criminosa contra a vida da população vulnerável. E ainda há quem clame por mais intervenção militar!
A deputada Flordelis foi parte daquele grupo que fazia arminha e pedia intervenção nos direitos. Foi elevada às alturas pelo redemoinho da tormenta que passou pelo país. Se culpada, cabe ao júri popular apreciar. A destituição de um membro de poder de suas funções, sem prova plena de ilicitude, é um atentado ao Estado de Direito e à democracia.
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João Batista Damasceno - Doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.