Marcus Vinicius Dias - Médico e gestor público.Divulgação

Em 2021 tivemos Olimpíadas fora de época no Japão. Apesar das restrições impostas pela pandemia, ofereceram ao mundo um evento com a emoção peculiar do “encontro dos campeões”. No olimpo dos deuses do esporte, histórias de superação nos fizeram, entre gritos e lágrimas, vitórias e derrotas, esquecer que há quase dois anos vivemos a espera de um milagre que nos devolva a normalidade de um mundo, caótico, é verdade, mas que já estávamos acostumados.
O esporte é superação! E nas Olimpíadas, mesmo em tempos de guerra, selamos a paz para competirmos de modo fraterno. E pela magia da invenção grega se calam canhões. E foi assistindo à prática do esporte que, quase por epifania, me ocorreu que mesmo com toda a dificuldade que os tempos atuais nos impõem, seguimos em frente. Seguimos em triunfo.
Me surpreendi ao ligar a TV e ver o Sir Andy Murray disputar uma partida de Gram Slam de modo competitivo. Pouco importa que ele tenha perdido, depois de cinco sets, a partida. A última vez que eu havia ouvido falar deste tenista, ex-número 1, foi em 2019. Ele havia, antes dos 40 anos, sido submetido a uma artroplastia do quadril. Traduzindo: colocaram uma prótese metálica nele.
Aprendi na Residência que artroplastia do quadril era algo preferencialmente para pacientes acima de 60 anos. E, uma vez operado, o paciente deveria ter suas atividades esportivas restringidas, pelo risco de desgaste precoce da prótese. Bocha e xadrez estavam liberados. Golfe, havia controvérsias. Tênis, jamais! Mas Andy, três anos depois, estava no US Open...
Murray poderia ter sido operado em qualquer lugar do mundo. Dinheiro não lhe falta. É habitual atletas de alto nível do mundo inteiro recorrerem aos grandes centros médicos dos EUA quando necessitam de tratamento cirúrgico. Por lá, pela dimensão e pela riqueza, é crível supor que há os cirurgiões com maior volume em cirurgias de alta complexidade. Creio que no caso do quadril não seja diferente. Mas o tenista escocês optou por ser operado em casa pelo NHS, a inspiração do nosso SUS.
A arte ortopédica é a responsável pela façanha no quadril do atleta três vezes medalhista olímpico nas quadras. Por tradição, e não por outra coisa, é uma especialidade predominantemente masculina. Possivelmente, do ponto de vista percentual, perca apenas para urologia na predominância dos filhos de Adão em relação as filhas de Eva. E por “imposição” matemática há, no mundo, mais cirurgiões ortopedistas liderando os serviços do que colegas mulheres.
Murray poderia escolher operar não só em qualquer lugar, mas com qualquer profissional. Murray foi operado pela ortopedista Sarah Muirhead-Allwood, mulher que à época já contava com mais de 70 primaveras. Ver Murray nas quadras, jogando em alto nível, supera a questão da magia do esporte. Transcende a superação do espírito humano. Vê-lo com a raquete empunhada num Grand Slam é, além de tudo, uma prova de triunfo.
Triunfo da arte de Hipócrates, da prestação de serviço público e da capacidade, independente do gênero, do ser humano.
 
Marcus Vinicius Dias é médico e gestor público