Por William Douglas e Vítor Pimentel Pereira
Dentre as funções dos vereadores como representantes do povo em âmbito municipal, a mais conhecida é aquela de votar e aprovar as leis municipais. Mas existe outra tarefa que lhes compete, não por todos conhecida: a de fiscais dos atos do Poder Executivo, para averiguarem se estão sendo praticados de forma adequada e de acordo com a legalidade.

Mas e o que acontece quando a equação se inverte e os vigias precisam ser vigiados? Quando aqueles que deveriam ser guardiães da lei e da ordem na esfera municipal fazem uso indevido de seus mandatos e se tornam os primeiros a descumprir a Constituição e as leis nacionais?

Essa situação hipotética transformou-se em realidade no dia 5 de fevereiro deste ano. O vereador de Curitiba Renato Freitas, do Partido dos Trabalhadores (PT), desejoso de realizar protestos contra a brutal morte do congolês Moïse Kabagambe e de Durval Teófilo Filho, invadiu a Igreja de N. Sra. do Rosário, naquela cidade, bradando palavras de ordem e ostentando faixas e bandeiras sob expresso protesto do líder religioso responsável pelo local.

A invasão, documentada em vídeo, mostra um padre, do alto de seus 74 anos (portanto, já amparado pelo Estatuto do Idoso), tentando em vão impedir a ocupação do templo pelos ditos “manifestantes”. Foi vaiado sob forte gritaria de um coro improvisado que berrava: “Fascista, fascista, fascista”!

Como se diz no jargão popular, “dois errados não fazem um certo”. Os lamentáveis homicídios de Moïse e de Durval, que mostram o rosto atroz das relações sociais em nosso país e o drama da perda da vida de cidadãos negros, não poderiam ser instrumentalizados para o cometimento de outra ilegalidade. O art. 5º, VI, da Constituição de 1988 assegura o livre exercício dos cultos religiosos e garante, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Exatamente aquilo que não foi respeitado pelo vereador “fiscal da lei” em Curitiba.

Ironicamente, talvez o vereador Renato não soubesse que a Igreja Católica, por meio da Cáritas, uma organização católica internacional de ajuda humanitária, foi a mão estendida da primeira hora quando Moïse chegou ao país com 14 anos de idade – bem como uma das principais entidades a vir a público lamentar e pedir providências quanto ao bárbaro crime cometido contra o congolês radicado no Brasil. Talvez também desconheça que a Igreja Católica Apostólica Romana é a maior instituição de caridade do mundo, e que vieram de Jesus defesas expressas dos direitos da mulher e do respeito a crianças, órfãos, idosos, deficientes físicos e estrangeiros, assim como da sadia separação entre matérias espirituais e políticas.

Queremos nos reportar ainda à nota pública do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR (disponível em: <http://www.ibdr.org.br/publicacoes/2022/2/8/nota-pblica-conduzida-por-militantes-do-pt-e-do-pcdob-que-interrompeu-missa-na-igreja-do-rosrio-em-curitiba>) que, de forma mais alentada, abordou de forma objetiva e técnica a questão da invasão.

A invasão de espaços sagrados de qualquer religião, “moda” nefasta que tem se espalhado por alguns países do mundo, não pode “pegar” entre nós, sob qualquer pretexto. Infelizmente, a atuação do vereador parece estar fazendo escola: em 23/02/2022, uma igreja evangélica foi invadida no Ceará, por uma pessoa que a família alega ter problemas mentais mas cujo Facebook indica ser um ativo militante político. Esta pessoa promoveu um quebra-quebra dentro da igreja. Tenha tal transtorno ou não, parece-nos evidente que esse tipo de conduta foi estimulada pelo exemplo – até agora não repreendido – de invasão da igreja pelo vereador. Entendemos que a falta de consequências graves e imediatas irá contribuir para outras invasões, ainda mais em ano eleitoral, em que as tensões políticas correm soltas.

Logo, está depositada nas mãos da Câmara de Vereadores de Curitiba a cassação do vereador para que tal notícia sirva de contraponto e limite a que isso vire “moda”. Lamentamos também ter visto alguns intelectuais, políticos, jornalistas e até religiosos católicos tentarem relativizar a invasão. Alguns disseram que os manifestantes entraram porque “a porta estava aberta” ou que entraram para “conscientizar os presentes” ou porque a igreja “era dos negros” etc.

A porta da igreja estava aberta para quem quisesse ir rezar; não existe direito de atrapalhar culto a pretexto de “conscientizar” terceiros. Então, é lamentável que alguns cidadãos, e até católicos, façam vista grossa para ataques a sua própria igreja, mostrando que talvez seus compromissos ideológicos sejam, para eles, mais valiosos que sua fé e seu Cristo. Já foi dito que “as pessoas têm direito a sua própria opinião mas não aos seus próprios fatos” (James R. Schlesinger).

Ultrapassando a questão daqueles que preferem a pós-verdade à verdade, estamos aqui para dizer que não podemos tratar a situação com relativizações ou leniência, sob pena de cada vez mais se “popularizar” o desrespeito ao sagrado alheio, o que viola a Declaração Universal de Direitos Humanos e o art. 5º, VI, da Constituição da República.

O caso concreto tem solução relativamente simples e que será exemplar: os vereadores têm o dever de vigiar a si próprios, o que se fará no caso com a cassação do invasor que desrespeitou idosos e o espaço sagrado dos outros. Os “vigilantes” que se esquecem disso precisam ser lembrados de que, para além da afronta ao sagrado alheio, na terra dos homens, as leis do país também velam por todos nós.