Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação

Há mortes que se morrem rapidamente, e há outras que aguardam, do tempo, o tempo de partir.
Sou da oração, mas não sou das que creditam a Deus a obrigação de se submeter às minhas vontades. Confio e pronto. Ele é quem arquitetou a vida e a enfeitou de liberdade. Somos livres para abolir o que nos afasta o amor e o viver, então, a felicidade. Mesmo nos momentos de dor.
Regina não é mais a mesma. O tumor foi consumindo suas esperanças de viver a vida com os netos que, há não muito, vieram. Celebrou, já com o conhecimento do fim. A filha demorou a engravidar. E, então, vieram três.
Vida é assim, um dia de festa e outro de dor. Ou festa e dor no mesmo dia. Não sei ao certo. O que sei é que sou amiga suficientemente amiga para rezar por uma morte bela.A aposentadoria me empresta tempo para cuidar de quem amo.
Amo Regina, há muito. Somos caminhantes do mesmo tempo. Trabalhamos na mesma escola e nos formamos no que há de mais bonito na vida, permanecer de mãos dadas. No dia da notícia do câncer, estávamos juntas. Ouvimos os dizeres complicados do médico e sua pressa em desdizer alguma esperança. Mudamos de médico. Ouvimos compreensões dos sofrimentos sobre os dias difíceis que viriam. Choramos. Enxugamos o choro e saímos para caminhar a brisa que nos ensinava que ainda havia vida.
Desde o dia da notícia até hoje, viajamos algumas vezes, bebemos brindando o que tínhamos, fizemos festas com cantorias, visitamos doentes mais doentes do que Regina naqueles dias. Ela sempre fez isso, voluntária na arte de entregar um pouco de si aos outros. O amor é doação. Quanto mais se dá, mais se acumulam felicidades.
O tempo foi dizendo, então, que o tempo de estar aqui terminou. Há alguns que não têm esse tempo. Que algum acidente leva ou alguma súbita dor. Não sei o que é melhor. Meu pai se foi sem despedidas. Sentado, fechou os olhou e se abriu ao Sagrado. Minha mãe viveu dias de dor e só depois fechou a vida. Para quem vai, talvez, seja melhor ir. Talvez. Mudo de ideia sempre sobre tudo. Para quem fica, é bom poder ir preparando os dias da ausência.
Dizem que há culturas que celebram a morte sem tanta dor. A morte pode ser bela. O desapego. O indizível encontro. Se soubéssemos o que seria, talvez seria mais fácil. Ou não. Não sei. Nesses assuntos que vão além do que vemos, tudo é mais delicado.
A delicadeza dos olhos de Regina persistem nas limitações do sofrido corpo. Ela me olha com amor e, com amor, eu vou me despedindo. Sou forte o suficiente para tirar a sua fralda, para ajudar a virar o lado em que ela descansa na cama, para auxiliar a filha no banho.
A filha de Regina é uma certeza para mim de que é possível semear e colher. Bela e boa como a mãe, abastece o dia brincando de felicidade.Regina gosta de seu humor divertido e ri espantando outros pensamentos menores. O médico que nos cuida - sim, porque todos adoecemos juntos e amadurecemos juntos na compreensão da morte - visita com delicadeza cada pergunta e não se apressa em apressar a partida.
Sabemos que os dias que nos restam juntas são poucos, sabemos que as horas podem ser muitas se compreendermos a qualidade do tempo e, então, nos divertimos com presença e memória, em um quarto de uma casa que já habitou mais possibilidades. Acordo em paz, sabendo que a morte é um ensinador da vida. É um limpador de sujeiras que nos acumulam tristezas por nos proibir o amar.
O amor sobrevive à morte. Hoje, vou dizer a ela, novamente, a vida que ela viveu. E vou afagar os seus parcos cabelos como se deve a quem reinventa os afetos. E, quando ela despedir a respiração, respirarei a gratidão de ter dito, muitas vezes, o bom e o belo de termos nos encontrado e percorrido, juntas, floridas e áridas partes da nossa existência.