Bernardo Kocher professor de História Contemporânea da UFFDivulgação

A invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro, por presumíveis motivos de segurança alegados pela Federação Russa que a eventual adesão daquele país à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) traria, expõe pela primeira vez após o fim da URSS (1989) uma crise profunda nas relações dos países europeus. Este episódio rompeu em definitivo com a esperança que surgiu ao fim do socialismo real, quando difundiu-se a ideia de que entraríamos em uma era de construção de um mundo pacificado, sem as ameaças de destruição da humanidade pelas armas nucleares construídas na Guerra Fria.
Com o tempo, no entanto, tais desejos se desvaneceram com o crescente número de conflitos (muitos deles com origens muito antigas) entre europeus e, também, entre asiáticos e africanos. São inúmeras as situações após 1989 de guerra e/ou invasão, como as que agora presenciamos no Leste Europeu: Kosovo, Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia. Além destes, tensões fortes na Venezuela, Irã, Cuba e Coréia do Norte introduzem constantemente um cenário de quase guerra. Este cenário de inúmeras crises contínuas localizadas expõe a alta tensão nas relações internacionais do mundo no pós-Guerra Fria.
Mas, curioso é notar que, em todos estas situações os Estados Unidos consorciado com europeus estiveram vinculados ao processo de invasão e guerra contra países fora da Europa Ocidental. Muitas vezes, como nas crises migratórias que estas invasões produziam, o chamando mundo desenvolvido, ou Ocidental, acabou por ter que arcar com as consequências destas intervenções, através de custos militares, auxílios econômicos ou amparo aos refugiados.
A crise que levou à invasão da Ucrânia não é, portanto, uma novidade, mas é uma situação diferente dos processos anteriormente descritos. Desta vez um país econômica e militarmente poderoso, fora da estrutura de poder internacional colegiada formada por EUA, Europa Ocidental e Japão, introduziu a sua própria política de interferência em um país com orientação distinta da sua em matéria de política internacional. Mesmo considerando que a Federação Russa já havia feito intervenções na Geórgia (crise da Ossétia) e na Criméia, o fato inusitado agora é que a ação russa introduziu uma ruptura com o chamado “mundo ocidental”.
A Ucrânia, ligada à Federação Russa por uma longa História em comum dentro do mundo eslavo, possui com esta convergências culturais e diferenças políticas profundas. Conviveram durante séculos, sempre expondo afinidades e disputas, sem chegarem à um modus vivendi satisfatório. Com o fim da Guerra Fria, a Ucrânia não encontrou um caminho econômico sólido. Diferentemente da Federação Russa, que se recuperou da conversão para o capitalismo e trilhou com facilidade sua inserção econômica internacional, principalmente através da venda de energia. Mas a Ucrânia não possui um modelo econômico estável e nem sociedade civil forte o suficiente para combater o poderio das oligarquias.
Entre idas e vindas, as pressões das populações de origem russa dentro do país (que possuem nacionalidade reconhecida pela Federação Russa) acabaram por influenciar o resultado eleitoral e levar ao cargo de presidente da República um seu membro. Neste momento a população de origem ucraniana reagiu contrariamente, alegando que seu destino deveria estar vinculado ao mundo ocidental, mais especificamente à Europa e seu bloco econômico, a União Europeia. Abriu-se aí uma crise que, em 2014, produziu a deposição do presidente Yanukovich e separou de vez as expectativas dos governos de Kiev e de Moscou.
Esta é a modelagem da crise ucraniana – país formado por regiões compostas de populações não ucranianas -, que gerou a atual crise militar, com desdobramentos no cenário regional internacional. Cessado o conflito militar, que cremos não será longo, restará a crise política internacional – provocada com o isolamento do governo de Vladimir Putin -, e, o que toca de perto ao nosso país, os problemas econômicos que poderão surgir com a radicalização das posições. Muitos produtos da pauta comercial Brasil-Rússia poderão ter que procurar novos mercados, já que uma das possíveis resultantes deste conflito será o aprofundamento das relações econômicas da Rússia com a China. Caberá ao Brasil adaptar-se à perda de mercados na exportação e obtenção de produtos importados, basicamente fertilizantes. Este é o desafio que assistiremos ao fim do conflito militar.
Bernardo Kocher é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF)

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