William DouglasReprodução

O Supremo Tribunal Federal deverá analisar, nos próximos dias, o ato do Presidente da República que concedeu 'graça' a um deputado condenado à prisão pelo próprio STF. Em suma, o presidente perdoou a pena do parlamentar usando instrumento previsto no ordenamento jurídico nacional. A expectativa em torno desse julgamento problematiza a imagem de “dono da última palavra” que se formou em torno do Judiciário ao longo dos últimos anos, ao passo que o Supremo e outros tribunais passaram a exercer maior protagonismo na vida política do país.
A descrença no sistema político, sentimento presente no Brasil e em diversos outros países, por certo favorece a busca por alternativas. Assim, o inconformismo de grupos que sofrem derrotas democráticas e a crise da representatividade passaram a ser escoados aos tribunais.
Ao longo dos anos, uma significativa parcela da sociedade vem clamando por soluções que encerrem esses problemas que parecem infindáveis. Como não existe vácuo de poder, o STF tem ocupado esse espaço institucional. A Corte passou a julgar desde um simples furto à venda de subsidiárias da Petrobras. Decidiu sobre liberdade de expressão, racismo, minorias, rusgas entre partidos e até decidiu em que momento um ser humano no ventre passa a ter alma, atropelando o corretíssimo limite legal que impede o Judiciário de atuar como legislador positivo.
Expressões como 'decisão judicial não se discute, se cumpre' e 'o STF tem o direito de errar por último' ganharam corações e mentes. Em regra, é assim, mas há exceções, e quando elas ocorrem não são "ofensa ao Judiciário", mas mera aplicação da Constituição. Isso reforça o dever de o Judiciário zelar por não dar ordens manifestamente ilegais (as quais não devem ser cumpridas) e assim evitar seu próprio descrédito. Um exemplo grave foi a tentativa, em dezembro recente, de tirar do cargo o presidente do Congresso com o poder de uma única caneta. Na ocasião, o senador não cumpriu a ordem inconstitucional. Citou o art. 55, § 2º, e ponto-final. O Supremo respeitou os freios e contrapesos e não se falou mais no assunto.
As exceções podem causar espanto, mas são parte do sistema. Particularmente, considero vergonhosos os crimes de colarinho branco, desaprovo asilo para terroristas e não gosto de "valentões" fazendo ameaças a servidores públicos. Não haja dúvida que são condutas que merecem repúdio veemente. Porém, dura lex, sed lex: tais condutas já foram objeto de atos "de misericórdia" por diferentes presidentes. Como já foi dito: podemos não gostar, mas eles têm autoridade para fazer isso.
Outro problema tem sido que os demais Poderes, talvez por exercerem suas prerrogativas constitucionais menos do que deviam, passaram a ver seus decretos, leis e demais atos revisados e, muitas vezes, derrubados pelo Judiciário – amiúde por decisões monocráticas, em que um único ministro, por mais sábio que seja, impede a aplicação de normas feitas por 513 deputados e 81 senadores. Em outros casos, o chefe do Executivo não consegue cumprir promessas de campanha porque um ministro que tem ideologia diferente o impede, e, pior, em decisão monocrática. Política pública só pode ser feita por quem tem voto popular: utilizar princípios genéricos para ir contra a vontade do eleitor é indevido. Isso não é democrático. Os Poderes e os partidos vencidos precisam aprender a respeitar as decisões dos eleitores.
Outro fenômeno recente são os prazos hostis, em que se determina limites temporais impraticáveis para respostas em assuntos para os quais 10 ou 15 dias seria razoável, embora ainda pouco, frente à complexidade dos casos. Esse mau costume já se espraiou até para a 1ª instância, na qual, esta semana, um juiz substituto deu ao Presidente da República 72 horas para explicar ato de competência privativa da Presidência. Qual a pressa, afinal? Prazos desnecessariamente curtos podem configurar espécie de assédio processual.
Por fim, alguns juristas mencionam que o Judiciário seria um “Poder Moderador”, ideia sem respaldo na Constituição, uma vez que o moderador estaria acima, e não em harmonia, com os demais Poderes.
Assim, neste momento, o Supremo encontra-se mais uma vez em ponto de inflexão. Tomando para si os poderes de investigação e acusação da polícia judiciária e do Ministério Público, criou a figura do magistrado concomitantemente vítima e julgador. Em outro vetor que pode justificar o indulto individual (a graça), a doutrina menciona uma pena desproporcional, caso clássico de excesso que pode ser corrigido pelo instrumento constitucional em questão e que sequer precisaria de exposição de motivos, assim como a nomeação de ministros. Sábios, os constituintes previram remédio legal para excessos, inclusive os cometidos pelo Judiciário. Legaram ao Presidente da República o poder de conter casos raros de arbítrio e exagero judicial. Uma forma de evitar o desconforto da graça constitucional teria sido a vítima não participar do julgamento e uma melhor dosimetria da pena. Quem comete um equívoco, ou dois, não deve se sentir agredido quando a comunidade jurídica ou a sociedade exerce o direito de crítica, ou quando outro Poder exerce atribuição privativa dada pela Constituição.
Os casos, felizmente raros, que testam o sistema de freios e contrapesos são necessários para trazer à lembrança que a última palavra nem sempre é do STF. A nomeação de ministros e a concessão de indultos pelo Executivo, bem como as cassações de parlamentares no Legislativo, são atos restritos à conveniência de cada um dos Poderes, que são separados e harmônicos.
O exercício de um ato privativo de um dos Poderes em nada diminui o outro, muito pelo contrário: engrandece nosso sistema de freios e contrapesos, que sempre que foi testado se fortaleceu. Ganham a população e a democracia. Quem não tem o hábito de ser revisado deve se lembrar que pode quase tudo, mas não pode ultrapassar os marcos que garantem a existência de nossa democracia e do Estado de Direito. Como já foi dito recentemente, ninguém está acima da Constituição. Sendo o STF seu guardião, creio que mais uma vez exercerá serena continência à Lei Magna.
William Douglas é Desembargador federal e integrante da Turma de Direito Tributário do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). É professor, escritor, Mestre em Estado e Cidadania e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo