Cidades se organizam a partir das necessidades sociais. A antropologia sugere fundamentações nas díades segurança e liberdade, certeza e experimentação, provisão e imprevisto. Seja por meio do isolamento ou do encontro, sem lares e vizinhos não existe apoio, tampouco cidade. Nas cidades habita-se, no sentido de viver, povoar e constituir. Se achar é residir.
Habitação é considerada uma “armadilha da pobreza” (Poverty traps). Um dos mecanismos de autorreforço que gera ciclos de manutenção da pobreza. Sem a segurança de uma moradia, um indivíduo perde sua referência social. Estudos também relacionam as condições de moradia com efeitos na saúde física e mental. Portanto, mesmo uma pessoa qualificada terá dificuldade de superar o desemprego sem condições habitacionais adequadas. Este é um obstáculo com efeitos em seis dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU.
O problema de habitação é comum a Portugal e ao Brasil. A diferença é que as condições para a sua manifestação criam variações de intensidade, frequência e de capacidade de resposta. O problema da habitação no Brasil é uma questão de desigualdade. Estima-se que 6,9 milhões de famílias estejam sem moradia, enquanto seis milhões de imóveis permanecem vazios há décadas. O déficit habitacional é ainda agravado por outras variáveis, tais como: 25% dos brasileiros vivem em habitações precárias; 23% em situação de coabitação; e 52% com ônus excessivo devido ao aluguel, segundo a Fundação João Pinheiro (2019).
Dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (2018) revelam que apenas 47% dos brasileiros têm acesso a saneamento básico. Não é exagero dizer que o Brasil vive um déficit urbanístico se habitação for um tema de direito da cidade e não apenas domicílio.
Em 2018, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) revelou que 74,5% dos portugueses eram proprietários de suas casas. Existem 730 mil casas abandonadas em estado de conservação deteriorado. Em números relativos, considerando a apuração dessas habitações per capta, o Brasil (3%) está em melhor situação do que Portugal (7%) para promover acesso. A diferença está no montante de necessitados e na capacidade da construção civil. Em Portugal, faltam 80 mil trabalhadores no setor.
Portugal dá resposta ao problema da habitação através de aluguéis sociais, conjuntos habitacionais (chamados de bairros sociais) e uma política de Housing first (prioridade ao acesso à moradia). Esta última é a principal diferença do que já foi testado no Brasil. Estima-se que cerca de 13% da população portuguesa se beneficie de algum desses programas (FFMS, 2018). A precariedade de infraestrutura atinge 27% da população portuguesa. Embora menor do que no Brasil, o ônus excessivo com aluguel atinge 31% das famílias, e estima-se que 6% das habitações estejam sobrelotadas. Apesar das diferenças, Brasil e Portugal têm desafios substanciais para enfrentar.
E não faltam razões éticas, sociais, econômicas e políticas para frear a expansão predatória das cidades movidas por especulação. A fragmentação da sociedade moderna nos impele à concepção de programas que aproveitem os recursos disponíveis para que a cidade seja um lugar de encontro, de construção e de partilha, não apenas para seus moradores atuais, mas para as gerações futuras. A habitação precisa ser saudável e sustentável, pois as cidades são o cenário de nossas vidas. É necessário ressignificar o repertório para edificar um projeto coletivo de cidade.
Allan Borges é subsecretário de Habitação e Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, em parceria com a PM4NGO, Hub de Portugal.
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