Direito à cidade é mais do que um direito de acesso. É uma garantia de fruição e transformações onde todos os cidadãos devem ser integrados, e não apenas incluídos. A cidade nunca foi um lugar harmonioso, mas um espaço de inovação. E isso ocorre através de processos destrutivos e criativos que devem ser mediados pela ação pública em benefício de um pacto coletivo e sustentável. É um consenso global que a falta de acesso à água e ao saneamento é um eufemismo para falta de dignidade nas condições mais básicas de vida. Porém, o acesso e a garantia deste direito humano continuam a ser um problema complexo. Os desdobramentos da violação desse direito acarretam inúmeros problemas de ordem direta (i.e., social, individual, sanitária) ou indireta, como a contaminação das produções de alimentos, gerando efeitos interligados e em grande escala. Nas favelas, a falta de infraestrutura dificulta que iniciativas de saneamento básico sejam implantadas.
Desde 28 de julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) declarou o acesso à água e ao saneamento como um direito humano, que tem como fundamento a promoção e manutenção da saúde pública, bem como a proteção do meio ambiente. Esse posicionamento foi fortemente apoiado pela diplomacia brasileira da época e continua alinhado com o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), reiterados na Agenda 2030. Esse direito também pode ser abordado do ponto de vista da bioética de proteção. Nos ambientes urbanos, a obtenção de agua potável e dependente de soluções coletivas. Como tais, constituem, certamente, uma questão pertinente à saúde pública. De acordo com a Constituição brasileira, em seus artigos 196 e 200, este direito é um dever do Estado.
Além disso, a qualidade ou acesso à habitação, com acesso à água e saneamento, é considerado “armadilha da pobreza” (Poverty traps) que funciona em conjunto e em ciclos de autorreforço, mantendo países e indivíduos pobres na mesma situação. No caso da habitação e do saneamento, a degradação do entorno desgasta paulatinamente a autoimagem do indivíduo, diminuindo sua confiança e autoestima. Assim, diminuem-se as chances de reunir meios de superar a situação. Por isso, a precariedade habitacional e o saneamento estão no cerne de outros problemas, como o desemprego.
Favelas e bairros populares possuem uma infraestrutura sanitária inadequada de abastecimento de agua e esgotamento sanitário. São territórios submetidos a graves inundações, com sistema de drenagem inadequado. Essas questões agravam os riscos epidemiológicos, dificultam a promoção da higiene e incidem diretamente na disseminação de doenças, como leptospirose, dengue e pneumonia. Essas patologias, atreladas a outros vírus, bactérias, fungos, infecções parasitárias, causadoras de diarreia e demais fragilidades, são as maiores causas de morte entre crianças com menos de cinco anos, além das mortes causadas por acidentes e pela violência local.
São necessários estudos contextualizados e voltados para identificação de boas práticas que ajudem a delinear estratégias que quebrem o ciclo de reprodução de pobreza e precariedade. A perspectiva do direito à cidade é uma premissa importante e deve ser inserida nas agendas institucionais para que o acesso aos serviços de saneamento considere as obras de implantação, os serviços de operação e de manutenção. Ações estruturais (i.e., obras) e estruturantes (i.e., gestão, participação social e educação) precisam ser combinadas para garantir acessibilidade qualiquantitativa, geográfica, econômica, financeira, informacional, educacional, étnica, geracional, jurídica, e de gênero, para reduzir as iniquidades sociais em saneamento e saúde.
O que temos é um retrato que não cabe retoques: a falta de saneamento mata os pobres e impede a chegada do Brasil ao século 21.
*Allan Borges é subsecretário de habitação do Estado do Rio de Janeiro e Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ
*Irene Ciccarino é professora do Politécnico de Leiria – Portugal e Doutora em Administração de Empresas pela PUC
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