O dia ainda não acontecia quando eu fitei o motorista. Nada de diferente o diferenciava de outros motoristas que me conduziam até onde eu deveria estar. Apesar do sono das horas ainda sem luz, eu o observava.
O dia ainda não acontecia quando eu fitei o motorista. Nada de diferente o diferenciava de outros motoristas que me conduziam até onde eu deveria estar. Apesar do sono das horas ainda sem luz, eu o observava.
Enquanto ele parava e deixava uma outra pessoa entrar, e partia, deixando as paradas, ele gesticulava levemente com as mãos e com a cabeça como quem conta uma história.Os seus lábios eram disciplinados para não liberar palavras. O condutor de silêncios fascinava minha mente com as imaginações do seu texto não-dito. De que lugar era o condutor? De muitos, certamente. Ninguém é de apenas um lugar. Inda mais quem conduz.
Adormeci pensando. Sonhei invernos rigorosos. E ele conduzindo. Acordei decidido a devolver o tempo bom para o meu tempo de existência. Gosto da primavera. Das suas teimosias em resistir.De onde eu estava, era possível arrumar alguma voz e perguntar o nome do condutor. E, depois, conduzir uma conversa. E, depois, ouvir a história dita em silêncios. Desisti. E, talvez, tenha mais uma vez adormecido.
Sonambulei delicadezas. Alguém sentou ao meu lado e emudeceu os meus pensamentos. Provisoriamente. Reparei nos não reparos de quem ia comigo. Quis acordar. O dia. A relação que poderia ter sido estabelecida. O amálgama dos sentimentos quando os que sentem se sentam ao lado. Pouco tempo depois, nada senti. Apenas os leves desníveis por onde passávamos. As diferenças que poderiam ser bonitas, mas que nos impediam, por alguma razão, nos impediam.
Deixei de lado a dispersão e voltei ao condutor. Ele conduzia como que nascendo em cada rua que cruzava. Seus olhos não acompanhavam apenas os parados. Seus olhos diziam a história silenciosa. Então, eu vi sorrisos. Então, eu vi preocupações. Então, eu vi nada. E adormeci novamente. E sonhei algum medo. As distâncias que temos que percorrer, por vezes, nos desafiam.
A claridade ia, então, demitindo a noite e explicando o dia. Eu teria trabalho, como sempre. O interminável trabalho de ir e vir, de permanecer e deixar de estar, de prestar atenção. Principalmente, de prestar atenção.
Quem era o invisível condutor? Invisível não a mim. Eu garantia o existir, por estar ali. E por querer saber.Quem eram os seus? Quem haveria de festejar a sua chegada, depois de mais um dia conduzindo? De mais um dia gentilmente necessário. Mesmo nos instantes mais cheios de precaução, em seus olhos, eu não vi aborrecimentos. O que atesta alguma valentia. Concluí, provisoriamente, que gostava ele de conduzir. Provisoriamente, porque há muito demiti a arrogância de mim. Prefiro os sussurros poéticos das dúvidas ao barulhar irritante das portas que se fecham ao que ainda poderia se ver.
Vejo o condutor e penso no belo do caminho. No que vai se despedindo e no que vai se avistando. Acordo, finalmente. E entendo que é a minha hora de descer. Caminho sem pressa e olho nos seus olhos e digo gratidão. Ele devolve comedidamente e prossegue conduzindo outros que como eu em algum lugar devem chegar.
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