Rio - Tem cueca e calcinha, perfume e batom importados, conjunto de panelas e até queijo fresco de Minas Gerais. Os camelôs abusam da variedade e tomam conta das calçadas, da Zona Norte à Zona Sul. Diante de uma postura visivelmente mais flexível da Guarda Municipal e da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop), principalmente por conta da crise econômica, as ruas se tornaram ainda mais atrativas para a informalidade e tem despertado interesse inclusive de ambulantes de outros estados.
E vem mais licença por aí. Além dos 18 mil ambulantes cadastrados pela prefeitura, mais quatro mil autorizações estão prestes a serem liberadas. O levantamento prévio à concessão das novas licenças deve ser concluído em um mês.
Na Rua da Glória, próximo a um posto da Seop, ambulantes tomam conta de dois quarteirões com a venda de produtos. A quinquilharia é tanta que dificulta a passagem de pedestres. Mais a frente, na Rua do Catete, as esquinas são compartilhadas por vendedores de bala, meia, pen drive e acessórios para celular. Comida também é comum por lá. O disputado feijão de corda sai em lotes de R$ 3 e R$ 10. “Tem vendido mais que água na praia”, contou o vendedor, que preferiu não se identificar.
Pela Zona Norte, os camelôs afirmam que são mais reprimidos pela prefeitura, mas isso não afasta o comércio informal. “Pelo menos todo mês a Seop vem, fica uma semana e some. O camelô então sai, mas acaba voltando depois”, contou Rajanand Pedrassoli, 22, vendedor de esfirras na Rua Dias da Cruz, no Méier. Na Praça Saens Peña, na Tijuca, entre um ambulante e outro, é comum encontrar estrangeiros, com suas bolsas e lenços para venda. “Tem de tudo: boliviano, peruano, chileno e angolano”, relatou o morador Mattheus Vanzillotta, 23.
Mas engana-se quem pensa que a categoria é desorganizada. Há 14 anos, o Movimento Unido dos Camelôs (Muca) batalha por melhores condições nas ruas. “Até hoje não sabemos qual é o projeto da prefeitura para os camelôs. Nós não queremos a cidade liberada, queremos uma cidade organizada, porque só liberar, abre precedente para a repressão”, pontuou a coordenadora do Muca, Maria de Lourdes, 46 anos, sendo 22 como camelô.
Lourdes conta que, em 2009, o então prefeito do Rio, Eduardo Paes, abriu um cadastro para regularizar o trabalho do camelô, mas muita gente acabou de fora. “Quem pegou autorização naquela época e conseguiu emprego depois acabou alugando a licença para outras pessoas, igual a concessão de táxi. Tem gente que paga até R$ 500 por semana pela barraca regularizada, isso é exploração, a prefeitura tem que acabar com isso”, criticou Maria, que tem quatro filhos e orgulha-se de ter tirado das ruas o sustento de sua família.
De acordo com a prefeitura agentes da Coordenadoria de Gestão do Espaço Urbano (CGEU), em conjunto com a Guarda Municipal e Seop realizam ações rotineiras de fiscalização na cidade a partir de denúncias dos cidadão ou solicitações de órgãos do quadro da própria Prefeitura. O trabalho ambulante é regulamentado pelo decreto 30587/09, que criou o Sistema do Cadastro Único de Comércio Ambulante (Cuca).
O outro lado da corda
Quem não fica tão satisfeito assim são os lojistas. Wilson Alves é dono de uma lanchonete em Copacabana e, para conseguir vender bem, precisa disputar clientes com os camelôs. “Estou há um ano para legalizar um projeto de mesas e cadeiras aqui na frente e só conseguir liminar recentemente, mas o camelô pode parar na minha porta e vender que ninguém mexe. É injusto com quem paga impostos”, desabafou.
Camelôs mascaram a taxa de desemprego
Pesquisador de Economia Aplicada da Fundação Getulio Vargas, Bruno Ottoni chama a atenção para a volatilidade do trabalho do camelô. “Houve um aumento da população ocupada por conta própria (trabalhador informal). A questão é que, no mês seguinte, esse trabalhador informal acaba voltando a procurar emprego. Esse vaivém influencia a medição e mascara a gravidade do cenário de desemprego”, explicou Ottoni.
O pesquisador aponta que, se o ritmo de variação dos ambulantes em abril tivesse ficado idêntico ao observado em março, a taxa de desemprego seria de 13,7% em maio, porém, dado o aumento de indivíduos nessa categoria (trabalhador por conta própria), a taxa acabou caindo para 13,3%.
Paulista largou empresa para ser camelô
Na Avenida Nossa Senhora de Copacabana as calçadas são estreitas e a disputa é ainda maior, seja entre camelôs, lojistas ou pedestres. E é lá que o Rodrigo de Oliveira, de 32 anos, trabalha. Ele saiu de São Paulo para vender queijo no Rio. A clientela é tanta que o ambulante abriu outras nove barracas entre o Centro e a Zona Sul. “Ganho aqui em dois dias de trabalho o que eu ganhava em um mês na empresa”, contou Rodrigo, que já perdeu cerca de R$ 3 mil em mercadoria para a Guarda em 2016. “Mas neste ano a relação (com a GM) está bem tranquila”, completou.
O ambulante "Y", que preferiu não se identificar vende feijão e frutas da época no Centro e Zona Sul. Ele passou seis meses em São Paulo, mas veio para o Rio há oito meses tentar a sorte. “São Paulo a guarda (municipal) bate nas pessoas e pega mercadoria. Aqui é mais tranquilo. Eles pedem pra gente não atrapalhar a passagem dos pedestres e de quem tem loja", contou "Y", que é formado em Automação Mecânica e está longe da família, que fica em Minas Gerais, há mais de um ano. "Se eu tivesse uma oportunidade no mercado é claro que eu não estaria na rua", completou.
Há 40 anos Carminha Lima mora no Catete, Zona Sul, e ela conta que nunca viu as ruas de seu bairro tão abarrotadas de ambulantes. Mas ao ver o feijão de corda não resistiu. "Fazia para meus filhos quando eram pequenos", lembrou. "Eles (ambulantes) tumultuam a rua, mas também têm contas pra pagar e está todo mundo desempregado. Concordo com o prefeito, só acho que ele podia arranjar um lugar pra eles ficarem, coberto e organizado", sugeriu Carminha.
Na Zona Sul, é notável que a chegada em massa dos camelôs incomoda alguns moradores. A socióloga e professora da Estácio, Amanda Mendonça, explica que essa realidade é o reflexo da crise econômica e gera conflitos sociais. “O morador da Zona Sul se sente invadido e não quer ver a pobreza bater à sua porta, literalmente. Que isso (a pobreza) seja lá em outro bairro, então acaba gerando uma reação. Ele vai querer um tratamento policial contra o camelô ou o morador de rua, a conhecida limpeza urbana”, explicou.