Amarildo: pedreiro foi visto com policiais da UPP antes de desaparecer - Reprodução
Amarildo: pedreiro foi visto com policiais da UPP antes de desaparecerReprodução
Por Bruna Fantti

Rio - Após ser detido pela polícia, o homem desapareceu e nunca mais foi visto. A família, muito pobre, sequer teve o direito de enterrá-lo, já que seu corpo sumiu. O caso mobilizou a opinião pública, ganhou grande espaço na imprensa e gerou muitas críticas à ação policial. Essa é a história do pedreiro Amarildo de Souza, que aconteceu há cinco anos, em 14 de julho de 2013, mas também é a história de João Alves de Castro Malta, que teve sumiço no dia 17 de novembro de 1884. Separados por 134 anos, os dois casos ficaram marcados pelas perguntas feitas nos jornais: a frase 'Onde está Castro Malta?' repercutiu da mesma forma que a recente 'Cadê o Amarildo?'.

Castro Malta foi detido em 17 de novembro de 1884 por estar sentado às 10h, na Praça da Constituição, atual Praça Tiradentes, no Centro. Foi acusado de desordem e vadiagem, esse último considerado crime na época. Já Amarildo foi detido na Favela da Rocinha por supostamente ter informações sobre o tráfico de drogas.

De acordo com a antropóloga Alba Zaluar, os casos mostram que o preconceito contra as camadas mais humildes da população atravessa as décadas. "É mais fácil prender aqueles que são vulneráveis. Os homens livres da sociedade escravocrata, que viviam de bicos, os capoeiras e a classe dos artistas sofriam perseguições. Isso persiste após a Proclamação da República. Amarildo já é outro contexto, de guerra às drogas, mas ainda há esse foco nas classes humildes, explicitamente nas favelas".

Um dia após ser preso, Malta foi enviado para a chamada Casa de Detenção, onde seria indiciado. No entanto, ao chegar no local, mal conseguia falar e morreu sem ajuda médica, segundo testemunha. No dia 20 de novembro de 1884, seu nome foi publicado no obituário do Jornal do Commercio mas, em vez de Malta, constava o sobrenome Mattos. A notícia dizia que o corpo havia sido enterrado no Cemitério São Francisco Xavier. A família procurou os jornais da época para saber se Mattos era Malta, já que a polícia não fornecia informações.

O jornal O Paiz, periódico que possuía ideais republicanos num período de monarquia, tinha Quintino Bocaiuva como redator. Ele passou a pedir a exumação do corpo enterrado para certificar de que se tratava de Malta. E, ao mesmo tempo, passou a usar o caso para criticar a Polícia da Corte e o governo. Sobre o atestado de morte apresentado pelos policiais, que dizia que Malta havia morrido de crise hepática, sem passar autópsia, o jornal publicou: "O documento da polícia nada prova, antes parece querer esconder um crime e crime de que, infelizmente, é ela acusada". Começava ali a campanha que o corpo, que a polícia dizia ser de Malta, fosse exumado.

A pressão deu resultado e foi feita a exumação. Cerca de 150 curiosos foram ver a ação e jornais levaram peritos com os repórteres para acompanhar a abertura da cova. Do túmulo, onde estava anotado que Malta havia sido enterrado, foram retirados 16 corpos. O carcereiro da prisão não reconheceu nenhum deles como sendo o procurado, assim como a família. Populares sugeriram, então, que as covas vizinhas fossem abertas. No total, 33 cadáveres foram exumados e Malta não foi reconhecido.

Com um princípio de revolta dos presentes, o delegado apontou o primeiro corpo retirado como sendo o de Malta. Apesar dos protestos, foi levado para perícia. O laudo deu como causa da morte, uma inflamação nos pulmões. Informava que o corpo era de um homem de 40 anos, quase o dobro da idade de Malta.

Outros jornais passaram a abordar o caso. O Brazil escreveu: "Se não temos mais a Bastilha, os cárceres de inquisição, nem as masmorras da Idade Média, onde então desapareceu Malta, se não está no cemitério? A polícia deve dar conta de Malta: o caso é sério. E mais sério do que o seu desaparecimento dentre os mortos é o seu desaparecimento entre os vivos, por artes da polícia".

Intelectuais começaram a discorrer sobre o caso. Machado de Assis publicou uma crônica a respeito, na qual indagou aos vermes o que ocorreu com o corpo de Malta. Aluísio de Azevedo também redigiu sobre o fato. Suas crônicas foram reunidas no livro 'Mattos, Malta ou Matta?', publicado no centenário do desaparecimento de Malta.

Para homenagear a atuação da imprensa na cobertura, a família do desaparecido contratou uma banda e passou na frente das redações. Apesar disso, parte da população criticou os jornais pelo tempo despendido sobre o caso envolvendo um homem que seria um desocupado. Às críticas, Bocaiuva escreveu: "Malta era efetivamente um pobre diabo, um artista, um operário: mas não tinha, por isso, menos direito à sua vida, à sua honra, à sua liberdade. Era um cidadão e isso bastava".

As suspeitas de que Malta teria sido morto pela polícia aumentavam e uma nova exumação foi marcada, conduzida por outros médicos. Entre eles, Barata Ribeiro e alguns ligados ao imperador Dom Pedro II. A nova autópsia era para identificar se o cadáver tinha uma cicatriz de uma fratura no braço direito, lesão que Malta havia sofrido aos 13 anos. Apesar de não terem encontrado a marca e do corpo ter cerca de 30 anos, atestaram que o cadáver era de Malta. A isso, outros legistas fizeram críticas. Um dos médicos se recusou a assinar o laudo. Uma exposição de ossos chegou a ser feita no Centro do Rio para explicar cicatrização óssea.

Entre os críticos ao laudo, estava o doutor Henrique Monat, que disse: "a consequência dessa infeliz questão é que nenhuma garantia pode esperar aquele cuja vida, cuja honra dependerá do veredito dos homens de ciência em nosso país".

A revista A Semana, em sua primeira edição, em 1885, publicou, sob o título 'A herança do 1884', o caso Malta como um fato mal resolvido. Ao fazer uma memória sobre o assunto, apontou que não era possível que o corpo encontrado fosse o do procurado. E indagou: "Onde está o cadáver de Castro Malta? Se ele de fato sucumbiu a uma enfermidade e não à violência, por que sonegaram e substituíram seu corpo? Com que interesse?".

Em 31 de janeiro, uma reviravolta. A Gazeta da Tarde entrevistou o homem que foi preso junto com Malta. Ele contou que havia dado um depoimento à polícia negando que seu companheiro tivesse sofrido violência. Mas, ao jornal, disse o contrário: Malta, após passar um dia sem comer ou beber água, apanhou após uma discussão com um tenente da corte. "Meta o facão neste insolente", teria dito o oficial, antes de ordenar que um subordinado lhe batesse.

Malta teria ficado tão ferido que não conseguiu mais comer ou andar sem ter ajuda. O companheiro de cela, ao pedir socorro, disse que escutou do carcereiro dizer: "Deixa morrer, é um a menos, nada se perde".

Apesar do relato conter detalhes, a polícia que investigou o caso disse que seria inverídico, já que o mesmo preso havia assinado um documento afirmando que Malta não tinha sofrido violência na prisão. O mesmo entendimento teve o Ministério Público e o juiz. A conclusão foi a de que houve relaxamento e falta de cuidado dos carcereiros, o que não seria crime. O caso foi arquivado.

Mesmo assim, o julgamento sobre a atuação das forças de Segurança da época foi utilizado como arma política pelos republicanos nos últimos anos do Império.

Doze condenados

No caso de Amarildo, os policiais que o torturaram na sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Rocinha, em busca de informações sobre o tráfico, foram levados a julgamento. Ao todo, 25 policiais foram processados. Um deles morreu antes da decisão, e 12 acabaram condenados por sequestro, tortura, morte e ocultação do cadáver de Amarildo. A maior pena foi a do então comandante, major Edson Santos, condenado a 13 anos e sete meses de prisão. A decisão que decretou a prisão dos policiais também determinou que eles perdessem a função pública. Embora a família tenha direito a uma indenização de R$ 3,5 milhões, essa ainda não foi totalmente paga.

Para o advogado João Tancredo, defensor da família de Amarildo, os casos relatados, apesar de separados por mais de 100 anos, são simbólicos em relação à violência praticada contra as classes mais humildes. "Mostra que mesmo em épocas diferentes, as arbitrariedades policiais são realizadas contra as camadas mais pobres", explicou.

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