Rio - Começa neste sábado um dos maiores circuitos de cultura de rua do mundo, no Rio de Janeiro. Da Baixada até a Zona Sul, o circuito engloba 118 rodas culturais de 24 municípios diferentes e, mesmo sem grandes incentivos públicos ou privados, tem a missão de levar cultura para todo o Estado, de forma democrática e inclusiva.
O Circuito Estadual de Rodas Culturais vai até o dia 15 de dezembro, após a realização de aproximadamente 700 eventos, segundo estimativa da organização. Nesta data, os dois competidores mais bem colocados de cada núcleo irão batalhar entre si pelo prêmio de campeão do Circuito. Além do grande vencedor da final, serão premiados também o vice campeão, os oito MC’s revelação, as duas rodas culturais revelação e ainda o campeão e vice de cada núcleo. As premiações, por enquanto, serão troféus artísticos feitos por Carlos Esquível, o Acme, um artista autodidata, grafiteiro, escultor e restaurador nascido na favela do Pavão Pavãozinho, em Copacabana. Mas Júlio César, criador do Circuito, conta que está buscando parcerias para oferecer premiações em dinheiro.
"Apesar da gente ser um exército espalhado por todo o Estado do Rio de Janeiro, que mobiliza milhares de jovens, que promove cidadania cultural e uma ocupação democrática, saudável e lúdica, nossa maior marca é a resistência. Sempre fomos tratados com descaso e truculência. Resolvemos virar essa página. Queremos o que é nosso por direito. Respeito, reconhecimento e valorização. O Circuito surge como um passo fundamental para aproximar as rodas, melhorar a competitividade das batalhas e ampliar público e visibilidade", completa.
TRANSFORMANDO TERRITÓRIOS
As rodas se dividem em nove núcleos: Central, Zona Oeste, Zona Norte, Zona Sul/Centro, Baixada, Metropolitano, Costa Verde, Região dos Lagos e Norte Fluminense. Mas, afinal, o que são elas?
No artigo número dois do regulamento do circuito, a definição é clara: "Entende-se por rodas culturais encontros comunitários de livre manifestação da cultura hip hop, realizados em espaços públicos, com periodicidade semanal, quinzenal ou mensal, totalmente gratuitos, sem qualquer restrição à circulação das pessoas e com responsabilidade de transformação do território".
Foi acreditando na tal "transformação do território" que a iniciativa começou, conforme explica Júlio César da Costa, idealizador do movimento: "O Circuito é fruto de uma articulação que começou há dois anos, quando assumimos o desafio de organizar o movimento das rodas [culturais] na zona oeste da cidade. Em 2016, criamos a Liga ZO e o Circuito ZO. E, em 2017, decidimos ampliar o foco dessa mobilização para todo o estado".
Júlio César começou a se envolver com o movimento das rodas culturais através de uma organização da qual é presidente, a ONG Onda Carioca - responsável pela criação do projeto Praça do Futuro. O objetivo da iniciativa, que começou em 2013, é revitalizar praças e transformá-las em um "instrumento de desenvolvimento sustentável do futuro". Mas, quando o projeto começou a ser implementado, no Terreirão, "ficou clara a dificuldade de diálogo com a juventude da favela", segundo Júlio César. "Daí me apresentaram as rodas, fizemos uma edição teste, ficamos impressionados com a repercussão perante o público jovem e decidimos fundar a Roda Cultural do Terreirão". "A roda ajudou a quebrar a resistência da juventude e a aproximou [do projeto]", conclui.
A RODA, A BATALHA, A RIMA, A BATIDA
Em uma roda cultural clássica, estão presentes os quatro elementos da cultura hip hop: a dança (o break), a arte (o grafite), a música (o DJ) e a poesia (o MC, também conhecido como mestre de cerimônias). A junção entre a música e a poesia também é conhecida como rap, que vem do inglês "rhythm and poetry" (ritmo e poesia).
O hip hop surgiu nos subúrbios de Nova York, na década de 70, e desde então se espalhou pelas periferias de todo o mundo. As letras de suas músicas denunciam mazelas da sociedade, como o racismo e a desigualdade social, através de rimas contundentes. "O hip hop é uma cultura que sempre foi formada pelas pessoas das camadas mais baixas da sociedade, que fizeram músicas e expressões artísticas que retratavam aquilo que se vivia nas comunidades", diz Dom Negrone, que participou da organização da primeira roda cultural do país e é articulador do Núcleo Central do Circuito. "O hip hop é a representatividade de um povo marginalizado, sendo a voz e a bandeira contra um sistema opressor, que ainda existe", completa.
O elemento que mais se destaca e mobiliza os jovens nas rodas é a batalha de MCs, em que dois ou mais jovens batalham entre si com rimas improvisadas na hora, e o vencedor é decidido por voto popular. "A batalha de MCs é um fator histórico da roda cultural, é a raiz da roda", explica Tom Camelo, mestre de cerimônia das rodas culturais da Pereira da Silva, da Cruzada e do Baixo Gávea, e articulador do núcleo Zona Sul/Centro do Circuito. "É na batalha que acontece a magia, a troca, a obra de arte que é essa briga com palavras, tá ligado? É isso que acontece ali: é uma briga com palavras (...) a roda, a batalha, a rima, são formas de empoderamento".
Dom Negrone, um dos mestres de cerimônia mais antigos em atividade na cena carioca, se envolveu com o movimento hip hop há mais de duas décadas, na festa Zueira, na Lapa, onde tudo começou. "Virou um pico, todo mundo se encontrava e toda noite sempre tinha o tradicional momento de 'freestyle', quando os MC’s que frequentavam o local faziam suas rimas", ele conta.
Ainda em 1998, acontece a primeira batalha de MC’s, produzida por Marcelo D2, na festa Hip Hop Rio. Após o fechamento do Zueira e um grande hiato, em 2003, Negrone ajuda a criar a Batalha do Real, considerada a grande precursora do movimento: "a semente foi a [batalha] de 1998 e, em 2003, veio a Batalha do Real, a mãe de todas as batalhas do Brasil", explica.
Depois de um tempo, quando a cena do hip hop voltou a ficar estagnada no Rio de Janeiro, "uma galera se reuniu na Fundição Progresso, em umas reuniões que rolavam e, na falta de eventos ligados ao hip hop, essa galera pegou o protagonismo de produzir eventos em suas próprias localidades, de fazer uma tomada de territórios de maneira cultural. A primeira foi na Lapa, a segunda foi em Botafogo e depois foi espalhando: Méier, Olaria, Vila Isabel…". O movimento se alastrou tanto que, hoje, sequer é possível ter certeza do número total de rodas culturais espalhadas pela cidade.
*Estagiário sob supervisão de Ricardo Calazans