Rio - Sérgio Cabral disse, em depoimento nesta terça, que resolveu revelar o esquema de corrupção que operou em seu governo para ficar bem consigo mesmo. Depois de dois anos e três meses preso, o ex-governador afirmou ao juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Criminal Federal, que é um homem muito mais aliviado.
O emedebista fez uma autocrítica por ter protagonizado os episódios de corrupção que confessou ao Ministério Público Federal em 21 de fevereiro e falou de ser supostamente viciado em dinheiro. "Esse foi o meu erro de postura, de apego ao dinheiro, ao poder. Isso é um vício", afirmou. Ele disse ainda que o dinheiro de propina que os doleiros Renato e Marcelo Chebar disseram ter lavado era realmente seu. "Participei da propina, sim. O dinheiro dos irmãos Chebar era meu dinheiro, sim".
Cabral declarou também que também são verdadeiras "99%" das declarações feitas à Justiça por Carlos Miranda, apontado como seu "homem da mala". Miranda revelou que fez várias operações de recebimento e distribuição de propina, em dinheiro vivo, por ordem do então governador.
O emedebista afirmou que o ex-governador Luiz Fernando Pezão (MDB), preso no fim do ano passado, também recebeu propina quando era seu vice-governador e como seu secretário de Obras. "Ele trouxe com ele o Hudson Braga, que era 'braço direito' dele e, sim, também existia a taxa de oxigênio. Para o Pezão, eram cerca de R$ 150 mil por mês".
O juiz Marcelo Bretas pediu a Cabral que detalhasse como funcionava o grupo político em sua administração, e o ex- governador respondeu: "Tinha o Regis Fichtner, que cuidava da parte técnica. Ele é um homem rico hoje. O Carlos Miranda tinha uma promessa de eu dar US$ 7 milhões. O Fichtner era responsável pelo arcabouço jurídico. Recebia propinas, assim como o Côrtes."
Segundo Cabral, houve um esquema de propina na primeira fase das obras no Maracanã, para os Jogos Pan-Americanos, quando o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) era seu secretário de Esportes e Lazer. Cabral não disse se Paes recebeu propina, mas afirmou que arrecadou dinheiro para a campanha do ex-prefeito do Rio, por meio de caixa 2.
"O Eduardo Paes, como meu secretário de Esportes, jamais recebeu benefícios. Mas recebeu doações do Iskin e do Arthur Soares para sua campanha (à prefeitura). Se não me falha a memória, Arthur Soares (conhecido como Rei Arthur, empresário e prestador de serviços para o Estado) deu, à campanha do Paes, de R$ 3 a R$ 4 milhões e depois reclamou muito porque os serviços não foram dados a ele. Ele colaborou com a campanha e esperava receber contratos. Depois acabou ganhando (a obra) do Centro de Operações do Rio", disse.
"São raríssimos os empresários que deram dinheiro para campanhas eleitorais e não esperavam contratos (públicos). Todos esperam retorno. No Brasil, isso é uma espécie de toma lá da cá. Uma ética de compromisso, você me ajudou, eu vou te ajudar. Não tem nada formalizado, mas está implícito", confessou.
Cabral disse que também fez questão que o ex-secretário de Paes e atual deputado federal Pedro Paulo (MDB) estivesse junto dele nessas negociações de caixa 2 da campanha de Eduardo Paes. O ex-governador, porém, isentou de responsabilidade sua mulher, Adriana Ancelmo, por negociações criminosas feitas por meio do escritório de advocacia dela. "Eu contaminei esse escritório quando pedi o repasse de caixa 2 para o dono da Rica. Ela não sabia de nada", afirmou. "No meu governo, havia promiscuidade entre dinheiro da propina e de campanha", acrescentou.
No depoimento, Cabral citou secretários que não sabiam dos esquemas comandados pelo ex-governador. Entre eles estão Antônio Francisco Neto, ex-prefeito de Volta Redonda e ex-presidente do Detran entre 2007 e 2008, e Nelson Maculan, ex-secretário de Educação.
As declarações foram dadas no primeiro depoimento à 7ª Vara Federal Criminal em que resolveu admitir seus crimes. Assim que começou o interrogatório no âmbito da Operação Fratura Exposta, que tratou do esquema de corrupção na saúde do Rio, Cabral disse que passou o tempo preso conversando consigo mesmo e com a sua consciência para tomar a decisão.
"(Resolveu fazer a confissão) Por tudo que a minha mulher e minha família têm passado, pelo sentido histórico que tudo aquilo significa. Em nome da minha família, da minha história, quis fazer isso para ficar de bem comigo mesmo. Hoje sou um homem muito mais aliviado", disse ao juiz Marcelo Bretas.
Cabral afirmou também que sente uma dor "muito profunda" pelo que fez. "Foi muito para quem tem uma carreira política reconhecida pela população. É uma dor muito profunda", afirmou. O ex-governador afirmou que havia uma tradição em cobrar propina de prestadores de serviços do Estado. No caso dos contratos da saúde, ele disse que ficava com 3%, e o ex-secretário de Saúde, Sérgio Côrtes, com 2%.
Suposta propina na igreja
Ainda em depoimento, Cabral disse que membros da cúpula da Igreja Católica do Rio participaram de transações envolvendo pagamentos de propinas. Cabral citou nominalmente o arcebispo do Rio, cardeal dom Orani Tempesta, e um outro padre, identificado como dom Paulo.
As propinas teriam a ver, segundo o ex-governador, com a organização social (OS) Pró-Saúde, que administra hospitais no Rio e em outros estados. O depoimento de Cabral foi pedido por ele e fez parte do último ato da Operação Fatura Exposta, que investigou pagamentos de propinas do setor de saúde a agentes públicos.
"Eu não tenho dúvida de que deve ter havido esquema de propina com a OS da Igreja Católica, da Pró-Saúde. Eu não tenho dúvida. O dom Orani devia ter interesse nisso, com todo respeito ao dom Orani, mas ele tinha interesse nisso. Tinha o dom Paulo, que era padre, e tinha interesse nisso. E o Sérgio Côrtes nomeou a pessoa que era o gestor do Hospital São Francisco. Essa Pró Saúde certamente tinha esquema de recursos que envolvia religiosos. Não tenho a menor dúvida", disse Cabral a Bretas, que em breve determinará as sentenças aos envolvidos.
Outro lado
A Igreja Católica respondeu em nota: “Sobre o depoimento do ex-governador, podemos afirmar que a Igreja Católica no Rio de Janeiro e seu arcebispo têm o único interesse que organizações sociais cumpram seus objetivos, na forma da lei, em vista do bem comum”.
A organização social Pró-Saúde disse em nota que colabora com a investigação: “A Pró-Saúde tem colaborado com as investigações e, em virtude do sigilo do processo, não se manifestará sobre os fatos. A entidade filantrópica reafirma neste momento o seu compromisso com ações de fortalecimento de sua integridade institucional, bem como com a prestação de um importante serviço à saúde do Brasil”.
Defesa de Côrtes
O advogado Gustavo Teixeira, que defende o ex-secretário Sérgio Côrtes, e seu cliente assistiram ao depoimento de Cabral. Ele disse que o depoimento do ex-governador nada acrescentou ao que Côrtes já havia admitido em juizo. Segundo o advogado, Côrtes já havia confessadoo o recebimento de propina, tendo inclusive feito a devolução de R$ 15 milhões à Justiça.
A reportagem ainda não conseguiu contato com a defesa dos demais citados por Cabral.
Com informações do Estadão Conteúdo e Agência Brasil