Rostos de Emily e Rebeca em muro grafitadoDivulgação

De 2018 a 2020 cerca de 2.200 crianças e adolescentes perderam a vida pela ação de agentes públicos de segurança no país. Somente o Rio de Janeiro é responsável por 13,1% dessas mortes. No ano de 2020, de acordo o Instituto de Segurança Pública (ISP), 56 pessoas, entre 0 e 17 anos, foram mortas em confrontos diretos em todo o estado. Desse total, 87,5% das crianças ou adolescentes assassinadas eram negros ou pardos. Os dados alarmantes são do Boletim Racismo e Violência, elaborado e lançado nesta semana pelo Fórum Grita Baixada (FGB).
Ainda segundo o Fórum Brasileiro de Segurança, em 2019 o Rio de Janeiro teve 269 crianças e adolescentes mortos pela polícia, sendo responsável sozinho por 40% do total de casos no país. Dentre esses registros no estado, 86% das vítimas eram negras.
"Não é por acaso e nem coincidência que a maioria das crianças e adolescentes mortos pela polícia é negra e periférica. De forma recorrente as políticas públicas de segurança não são voltadas para a periferia e favelas, onde a população é majoritária negra. Esse dado confirma uma política racista de Estado e da polícia. No caso do Rio temos uma política pública baseada no confronto, onde a polícia é a que mais mata e também a que mais morre", afirma Adriano Araujo, mestre em sociologia e coordenador executivo do FGB.
 
Araujo fala ainda sobre os aspectos que mais chamaram atenção no Boletim. "Há um discurso generalizado por parte da sociedade de que homens negros adultos que são mortos pela polícia é de que boa coisa não estavam fazendo. Sempre há uma justificativa para a morte de homens adultos. Mas, e a morte das crianças negras: elas estavam fazendo algo errado? Obviamente elas não estavam em confronto com a polícia mas também foram atingidas por essa política belicista e militarizada", critica.

Para o presidente da ONG Rio de Paz, Antonio Carlos Costa, o perfil das crianças e adolescentes mortos em confrontos se repete e ajuda a entender o descaso com que são tratados.
 
"Sempre que um menino ou uma menina morrem de forma tão banal e hedionda pensamos que tudo vai mudar, mas nada muda. A sociedade não cobra mudanças e o poder público trata estes crimes com indiferença. O perfil destas crianças mortas nos ajuda a entender o por que do descaso. São meninos e meninas moradores de comunidades pobres mortos por confrontos de bandidos ou em tiroteio entre bandidos e policiais. Mortes como estas na Zona Sul do Rio de Janeiro não seriam toleradas jamais".
 
Luciene Silva, da Rede de Mães e Familiares de Vítimas de Violência na Baixada Fluminense, atribui ao racismo estrutural às mortes. “Recebemos uma variedade de demandas que se manifestam pela falta de políticas públicas, pela omissão desse Estado e pela conivência dele seja nas práticas criminosas, seja pela impunidade dos casos. O racismo em todas as suas formas, principalmente o estrutural é sem dúvida o responsável por todo esse contexto de execuções, exclusões, seletividades, preconceitos e criminalizações do povo negro e pobre”.

No ranking nacional de mortes de crianças e adolescentes o Rio de Janeiro registrou 16,5% dos casos em 2017, 28,8% em 2018 e mais de 37% em 2019. Em 2020, os demais estados não divulgaram os números de mortes. O defensor público Rodrigo Azambuja, coordenador de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Rio ressaltou que no período de pandemia crianças e adolescentes ficaram ainda mais vulneráveis.

"Em meio à pandemia e fechamento das escolas houve uma perda porque muitas vezes as escolas funcionam como espaços protetivos. No âmbito da violência urbana, enquanto a gente não conseguir parar a circulação de armas de fogo no país a gente vai colocar as crianças e adolescentes ainda mais vulneráveis".
 
Panorama na Baixada Fluminense
 
Somente na Baixada Fluminense, no ano passado, 17 crianças ou adolescentes, entre 12 e 17 anos, foram mortas em ações da polícia. Em 2019 foram 33 crianças ou adolescentes e em 2018, foram 274. De acordo com dados do Fogo Cruzado (2021), coletados entre 2017 e 12 de outubro desse ano, a Baixada Fluminense concentrou 25% do total de crianças baleadas na Região Metropolitana do Rio. Duque de Caxias teve o maior número de crianças vítimas da violência armada da região: foram 11 vítimas.
 
Segundo o Boletim do Fórum Grita Baixada, de janeiro a outubro de 2021 a região registrou 972 tiroteios, com 284 mortos e 180 feridos. Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Nova Iguaçu e Mesquita concentram 87,2% de todos os tiroteios da Baixada; 83,4% dos mortos e 76,6% dos feridos.
 
"A gente costuma dizer que a Baixada é uma terra violentada e, nesse sentido, as narrativas contidas nesse segundo boletim não nos deixam mentir: são crianças e jovens sendo assassinados por um estado que deveria garantir segurança e vida. São crianças e jovens negros amedrontados com uma violência real de um estado que mata cotidianamente e nem ao menos se responsabiliza", explica Lorene Maia, articuladora de territórios do Fórum Grita Baixada.
 
Ilsimar de Jesus, da Rede de Mães de Vítimas de Violência na Baixada Fluminense, é categórica ao dizer que o poder público não se importa com as vidas perdidas.
 
"Como mãe de vítima o que vejo é que para o poder público a violência é uma opção, não um problema.
Porque se a violência de estado fosse um problema na Baixada Fluminense, o estado já teria resolvido. Como moradora da Baixada, mulher e mãe de jovens (e de um jovem que se foi), eu fico me perguntando o
que legitima esse estado a matar nossas famílias em nossos territórios? Quem disse que eles podem matar e ficar impunes? Infelizmente o sentimento que a gente tem é o de apagamento. Nós somos vidas que não
importam para o poder público".

Lei Agatha Felix na prática
 
Sancionada pelo governador em janeiro de 2021, a Lei Agatha Felix foi criada para garantir que crimes cometidos contra a vida de crianças e adolescentes tivessem prioridade nos trâmites de procedimentos investigatórios. Só em confrontos armados, de acordo com a plataforma Fogo Cruzado, entre 1 de janeiro a 26 de novembro de 2021, 12 crianças foram baleadas na região metropolitana do Rio e 4 delas morreram. Neste período, 15 adolescentes foram mortos e no total 39 foram baleados. Os casos permanecem sem resposta, em sua grande maioria. Apesar da lei, a morosidade nas investigações continuam, de acordo representantes de movimentos que lutam pelos direitos humanos.
 
Para a deputada estadual Renata Souza, uma das autoras da lei, pouca coisa mudou na prática. "Desde a sanção da Lei Agatha, infelizmente nada mudou. Infelizmente, não temos informações precisas sobre índice de solução desses casos, mas sabemos que a morosidade é a regra. Para mudar essa realidade precisa de mobilização popular, pressão sobre o Estado e governos. O único caso em que a Lei Agatha foi cumprida até agora foi o do menino Henry Borel. Os demais casos seguem sem resposta".
 
O presidente da ONG Rio de Paz, ressaltou que a lei por si só não garante a respostas. "A autoria destes homicídios raramente é elucidada e as famílias destas vítimas não recebem nenhum amparo por parte do estado. Criar uma lei para dar celeridade a apuração desses casos não é o suficiente se não temos uma polícia bem equipada para fazer este trabalho e um estado que se importe com essas vidas. O que é necessário fazer é evitar que essas mortes aconteça e para isso é preciso mudar a nossa política de segurança pública que só mata, inclusive nossos policiais", criticou Antonio Carlos Costa.