Num país onde qualquer assunto é tratado com a mesma paixão que divide as torcidas, a surpresa foi ver o futebol prejudicado por uma disputa precipitada e egoísta
Por Nuno Vasconcellos
Num país onde qualquer assunto é tratado com a mesma paixão que divide as torcidas, a surpresa foi ver o futebol prejudicado por uma disputa precipitada e egoísta.
Já se tornou comum, no Brasil, dizer que o cidadão não sabe mais dizer de cor os nomes dos onze titulares da seleção de futebol, mas é capaz de reconhecer e ter opinião formada sobre cada um dos onze integrantes do STF. Tudo no país tornou-se objeto de disputa e todos, mesmo aqueles que não têm direito líquido e certo sobre o que pleiteiam, parecem se sentir no direito de recorrer à Justiça pelos motivos mais banais. E, assim, até aquelas divergências corriqueiras, que no passado eram resolvidas com uma boa conversa, acabam se transformando num Fla-Flu — expressão que o jornalista Mário Filho, que dá nome ao estádio do Maracanã, criou para se referir à rivalidade entre dois dos mais tradicionais clubes de futebol do Rio de Janeiro e do Brasil.
Fla-Flu, no final das contas, acabou se tornando sinônimo de qualquer disputa acalorada que se trava no país — como, por exemplo, a guerra de opiniões sobre o uso da hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19. O isolamento social, recomendado como medida de prevenção contra a disseminação do coronavírus, é outro tema que também divide opiniões com a força de um Fla-Flu. Os currículos dos ministros, as queimadas na Amazônia ou qualquer outro assunto em discussão acaba fazendo de cada um o torcedores que não se contenta em ver seu time vencer. Ele se satisfaz, também, com a desgraça do adversário.
POTÊNCIA DO FUTEBOL — A insensatez que marca esse Fla-Flu travado fora dos gramados acabou sendo trazida para dentro do campo, na disputa do bom e verdadeiro Fla-Flu disputado na quarta-feira passada. Se vencesse, o Flamengo levantaria a Taça Rio que, somada à Taça Guanabara conquistada em fevereiro, daria ao clube o título de Campeão Carioca de 2020 sem a necessidade de disputa dos jogos finais. Na partida, em que o Fluminense acabou saindo em vantagem depois de empatar em 1 a 1 no tempo normal e vencer nos pênaltis, os advogados das duas equipes atraíram mais atenção da torcida do que os atletas em campo. Desde o ano passado, o Flamengo vem se firmando como a maior potência do futebol brasileiro. Com um esquema de jogo inovador, liderado pelo treinador Jorge Jesus, o campeão brasileiro de 2019 se tornou o adversário que todos querem derrotar. Essa condição, que deveria engrandecer, parece ter disso esquecida na quarta-feira.
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Com base na Medida Provisória 948, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia 18 de julho, o Flamengo entendeu que poderia exibir a partida em seu canal de Internet — e isso fez a TV Globo, detentora dos direitos de transmissão, se desinteressar pela partida. No final, depois de uma disputa judicial que mereceu mais espaço no noticiário do que a partida dentro do gramado, apenas o canal do Fluminense pôde mostrar o confronto.
ADVERSÁRIOS FORTES — O que se viu em campo foi um Flamengo apático, que em nada lembrava o time vibrante que encantou a torcida no ano passado. Os jogadores do Fluminense compensaram sua inferioridade técnica com disposição, dividiram a bola com determinação, ocuparam todos os espaços do campo e, enquanto tiveram fôlego, conseguiram parar um adversário que parecia estar ali só para cumprir tabela. No final, o maior prejudicado foi o próprio Flamengo, que não pôde faturar com a transmissão da partida por seu canal e viu o adversário ganhar dentro e fora do campo.
O clube continua favorito para a disputa do título, que terá um jogo hoje e outro na próxima quarta-feira. Ele deve, porém, repensar a estratégia de que se valeu nessa briga travada num terreno em que, pelo que se viu, não tem a mesma força nem a mesma superioridade que demonstra ter em campo. O direito do Flamengo de se apoiar no peso de sua torcida para se firmar também como a grande potência financeira do futebol brasileiro é líquido e certo. O que a diretoria não pode, no entanto, é ser ingênua a ponto de imaginar que os rivais ficarão quietos diante de sua movimentação.
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Os meios de comunicação estão em transformação no mundo inteiro e era de se esperar que, mais cedo ou mais tarde, as mudanças chegassem ao esporte mais popular do mundo. No futuro, a atual postura do Flamengo, de querer ter o controle sobre a própria imagem, pode se revelar um avanço. Mas, neste momento, a jogada pareceu precipitada e egoísta. Mais eficaz do que se apoiar na Medida Provisória 948, que Bolsonaro parece ter assinado com a intenção de manter acesa sua briga com a TV Globo, teria sido chamar os outros clubes para conversar, expor seus argumentos, propor parcerias e encontrar um caminho que lhe permitisse faturar com sua grandeza, sem, no entanto, querer cortar o oxigênio que mantém vivos os seus rivais. Tomara que a diretoria do Flamengo tenha aprendido que o clube, por maior que seja, necessita de adversários fortes, nem que seja para afirmar sua superioridade no esporte.