A cura de qualquer doença começa pelo diagnóstico correto. Para deixar de sofrer com a violência é preciso chamar os conflitos no Rio pelo nome certo. Estamos em guerra!
Já passou da hora de nós, que somos comprometidos com o Rio de Janeiro — e que ainda sonhamos com um futuro mais tranquilo e seguro para os fluminenses e os cariocas — deixarmos a hipocrisia de lado. Precisamos parar de enxergar cada confronto entre as forças de Segurança e as facções criminosas no estado como um caso isolado. Os dez mortos na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, na semana passada, os 29 abatidos em maio na comunidade do Jacarezinho, as 100 pessoas atingidas por “balas perdidas” até outubro deste ano bem como os 19 agentes de Segurança baleados no Grande Rio apenas no mês passado caíram em batalhas diferentes de uma mesma guerra.
Chega de tentar negar a realidade! O Rio está em guerra. Quanto mais demorarmos a admitir essa verdade, mais caro será o preço que pagaremos por nossa omissão. Quanto antes reconhecermos o estado de guerra, mais cedo as pessoas inocentes e prejudicadas pelo conflito estarão sob proteção de convenções internacionais — o que seria ótimo, uma vez que as leis brasileiras têm se mostrado insuficientes para resguardar seus direitos.
FORÇAS EM CONFLITO — No limite, há até uma base legal para uma decisão delicada como essa. As Convenções de Genebra, que estabelecem normas para as situações de conflito armado, não se aplicam apenas aos confrontos entre forças regulares de países diferentes. Elas valem, também, para casos em que grupos rivais de uma mesma nação se enfrentam em conflitos que põem em risco as vidas de cidadãos que nada têm a ver com as escaramuças.
As convenções se destinam a proteger as vítimas da guerra e há quatro delas em vigor. O Artigo 3º é idêntico em todas. Ele estabelece, principalmente, a obrigação das forças em conflito darem tratamento humanitário aos prisioneiros e proteção às pessoas expostas ao fogo cruzado. E proíbe, em especial, “assassinatos; mutilações; torturas, tratamentos cruéis, humilhantes e degradantes; a tomada de reféns e os julgamentos parciais” — conforme assegura o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, entidade reconhecida pela neutralidade, que atua nas regiões conflagradas.
É aí que começa uma discussão cuja conclusão inevitável aponta para a gravidade do conflito visto hoje em dia no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro. Existe no país pelo menos um caso conhecido em que a Cruz Vermelha precisou recolher o material de divulgação de suas ações porque suas iniciais, C.V., coincidem com as de uma das principais facções criminosas do país.
Os bandidos não gostaram de ver sua sigla utilizada pelo grupo humanitário e exigiram que o material saísse de cena. E saiu. Isso não é brincadeira! Esse caso é real e serve para ilustrar (como se fosse preciso) o poder dessas organizações criminosas que nasceram à margem do Estado e que estão cada vez mais ligadas aos grandes cartéis internacionais do tráfico de drogas.
O fato é que as organizações criminosas têm se mostrado fortes o suficiente para disputar com o Estado o poder sobre determinadas áreas. Sendo assim, nada mais sensato do que reconhecer a situação e adotar medidas que protejam os civis das ações mais violentas dos lados em conflito. O reconhecimento do estado de guerra traria, ainda, outras vantagens. Ele serviria para tirar das costas das forças oficiais de segurança a responsabilidade por toda e qualquer consequência trágica das ações em que estejam envolvidas. Por se tratar de uma guerra declarada, a responsabilidade passaria a ser, aos olhos da opinião pública, no mínimo, compartilhada com o inimigo.
PESOS E MEDIDAS — Isso, no entanto, não é o que acontece. Em todos os conflitos que resultam em mortes, os policiais envolvidos e identificados são invariavelmente acusados de cometer irregularidades — ainda que estejam, apenas, cumprindo seu dever e protegendo suas vidas. Enquanto isso, os bandidos são habitualmente apontados como vítimas inocentes da truculência do Estado.
Não! Ninguém aqui está afirmando que as forças de seguranças não cometem excessos nem que todas as acusações feitas aos policiais são injustas. Também não é o caso de insinuar que todos os mortos do outro lado sejam criminosos e que, por isso, merecem o destino trágico. Nada disso! O que está sendo dito com todas as letras é que, se passarmos a tratar a situação como o que ela de fato é — ou seja, como uma guerra — poderemos adotar pesos e medidas mais justos para avaliar a situação. E, assim, encontrar soluções mais adequadas para o problema.
Os relatos do confronto de São Gonçalo, para citar apenas o exemplo mais recente, mais confundem do que elucidam o que de fato aconteceu. O que se sabe é que, na manhã do sábado, dia 20, o sargento Leandro Rumbelsperger da Silva foi alvejado na cabeça enquanto patrulhava as imediações da comunidade do Salgueiro. Os policiais reagiram. Houve troca de tiros com os criminosos — e um deles teria sido ferido.
A polícia, então, solicitou autorização judicial para que o Bope entrasse na comunidade para resgatar os policiais emboscados e recolher o suspeito ferido. (No Rio, enquanto os bandidos agem onde e como bem entendem, a polícia precisa, por decisão do STF, pedir autorização para cada operação que pretende realizar!)
Cumprida a determinação, o Bope entrou na comunidade. A troca de tiros foi intensa e se prolongou até a noite. No dia seguinte, havia oito corpos caídos numa área de manguezal. Cinco tinham registos em suas fichas policiais. Três, não. Alguns estariam usando trajes camuflados. (Como a polícia civil não foi chamada para fazer o recolhimento, os moradores cuidaram de remover os corpos dos locais onde caíram).
PRESERVAÇÃO DA CENA — Tomadas ao pé da letra, conforme observou o deputado Carlos Minc, em nome da Comissão da Alerj que fiscaliza a comportamento da polícia nessas operações, no caso da Comunidade do Salgueiro, houve o descumprimento de pelo menos 15 normas legais. Entre elas as que preveem a preservação da cena do conflito, a perícia imediata do local e o recolhimento de provas.
O comando da PM afirma que as circunstâncias do tiroteio não permitiram sequer uma avaliação do terreno e que os adversários estavam numa quantidade muito superior ao número de mortos. Entre os bandidos estaria Antônio Ilário Ferreira, apelidado de Rabicó, que seria chefe do tráfico de drogas na região. Em tempo: ele estava num presídio no Mato Grosso do Sul e foi posto em liberdade no final de 2019, por ordem do STF...
Ouvidos os argumentos de um lado e do outro, a conclusão é que os dez mortos da semana passada (além do sargento e das oito vítimas, também morreu um dos acusados de participar da emboscada que matou o militar) apenas engrossarão as estatísticas da violência no Rio. E que nenhuma das providências que vierem a ser adotadas (que, a rigor, são muito parecidas com as que foram tomadas após as ocorrências anteriores) contribuirá para a solução definitiva do problema.
A situação é terrível e, como no caso de qualquer doença grave, a solução se inicia pelo diagnóstico correto do problema. No caso da violência no Rio, muito já se disse a respeito das causas, mas pouco se fez para dar a elas um tratamento eficaz. O nome da situação é guerra — e quanto mais demorarmos para tomar as providências necessárias para por fim ao conflito, mais distante ficará o dia em que os fluminenses e cariocas, finalmente, poderão sonhar com um futuro mais tranquilo e, sobretudo, seguro.
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