Comentar a obra de Fernando Bryce, desde a minha perspectiva, passa necessariamente por pensar um tema relevante tanto dentro como fora do campo da disciplina histórica, uma relação entre a dupla história-arquivo. Ao desconfiar da grande história que aprendemos na escola, e que tão habilmente ajuda a construir e a manter por séculos a hegemonia dos vencedores desde a sua modernidade, a arte contemporânea tem demonstrado uma abundante e profunda reflexão sobre o assunto. De acordo com vários pensadores, a crise da ciência histórica é um problema arrastado, até se transformar em sentido comum. A definição e os usos do arquivo – e suas transformações na atualidade – respondem a vários processos, cujos efeitos na construção histórica modificaram a maneira com que nos relacionamos com o passado.
Esse fenômeno, desde a perspectiva do arquivo, foi vigorosamente estudado por autores como Hal Foster ou Ana Maria Guasch. Um importante paradoxo decorre a esse respeito: a crise como abertura, a desautorização das narrativas históricas hegemônicas, dando lugar às narrativas alternativas e aos usos alternativos do arquivo.
A obra de Fernando Bryce dialoga com esse paradigma, ao mesmo tempo que explora as possibilidades do arquivo a partir de uma mesma operação. Seu trabalho consiste na reprodução manual de documentos e imagens históricas, extraídos de meios de comunicação de massa como jornais e revistas, por meio do desenho em tinta nanquim sobre papel. Nessas cópias, caracterizadas por seu rigor e fidelidade visual, o artista desenvolve o que chama de “análise mimética”.
Os resultados são grandes constelações de desenhos que passam a ideia de uma história disseminada, que em seus contrapontos se opõe à oficialidade transmitida originalmente, em uma apropriação visual sempre carregada de ironia. Nessa história de fragmentos visuais, cada peça corresponde a uma engrenagem que se potencializa em suas inter-relações. Em sua totalidade, nos é transmitida a mencionada realidade do arquivo, um conceito desintegrado do arquivo.
Nessa operação, a obra de Bryce caminha concomitantemente para uma sentença que hoje contextualiza nossa sensibilidade em relação à história: a perda de um sentido único e a proliferação de “outras” memórias. Estas, influenciadas pelas catástrofes do século 20 ocorridas na América Latina, das quais Bryce se aproxima com sua obra. É o caso da série Américas (2005), em que o artista revisita a primeira década de edições da publicação oficial da Organização dos Estados Americanos (OEA), reproduzindo com nanquim algumas das páginas que exibem o olhar norte-americano sobre o Pós-Guerra. Ali, utopia, progresso e subdesenvolvimento se colidem entre as interpretações do continente. O trabalho abarca questões recorrentes no corpo de sua obra, como o pensamento revolucionário e a identidade latino-americana.
Envolvidos sempre em amplas investigações e pesquisas de documentos, os conjuntos construídos pelo artista – que seguem um padrão de quadros simples, alinhados simetricamente – procuram fazer uma reconstituição alternativa do passado, por exemplo, a partir dos problemas vividos pelos países latino-americanos, recipientes das mais cruéis crises induzidas. Na obra, destaca-se a sua preocupação em enfocar a história peruana. É o caso de Atlas Perú (2000-2001), série composta de mais de 500 desenhos, em que imagens de jornais e revistas contam a história do século 20 no Peru por meio da visualidade.
Através da operação da cópia, sua obra favorece a criação de um novo arquivo e, com isso, a construção de uma nova história visual. Ao extrair as imagens de seu contexto de circulação de massa, ao removê-las de seu passado, desnaturalizá-las e dar-lhes um novo sentido crítico, a história enfrenta seus autores.
Assim, a obra de Bryce é uma entrada para se pensar as transformações das noções de história e de arquivo. Se antes podíamos delimitar claramente o arquivo, hoje nos perguntamos se existe algo que não possa chegar a se converter em arquivo. A arte que trabalha com a história – e, particularmente, obras como as de Fernando Bryce refletem esta questão – mostra que os materiais históricos são fundamentais para continuar desenredando as narrativas do poder, a fim de questionar seu discurso hegemônico.