Rio - A psicanálise diz que, quando estamos apaixonados, tendemos a idealizar o objeto amoroso e negar tudo aquilo que o conteste ou critique. Esse comportamento também aparece quando somos crianças. Neste estágio de desenvolvimento emocional, a complexidade do mundo é dividida entre bem e mal. Um comportamento que não é estranho para quem acompanha o debate político brasileiro nos últimos anos.
"Tudo o que vai contra um sistema de crenças é negado e desvalorizado, e tudo que reforça esse sistema é aceito incondicionalmente, isso leva cada vez mais a uma polarização entre o bom e o mau", explica a psicanalista Olivia Porcaro, mestre pela Universidade de Londres.
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Ao longo da campanha eleitoral, fatos históricos e científicos estabelecidos, como o Holocausto na Alemanha nazista, o tráfico humano para escravização no Brasil e perseguição política no Regime Militar brasileiro têm sido negados e contestados.
Na internet, os debates têm sido polarizados entre dois polos: o antipetismo e a esquerda. A constatação é feita por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) responsáveis pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital. "As pessoas tomam posições que se alinham de maneira automática aos discursos de cada polo. Estão inclinadas a acreditar em uma narrativa e encaixam os temas do dia neste viés, que chamamos de viés de confirmação”, descreveu o professor Marcio Moretto Ribeiro, coordenador do monitor. Ele explica que o contrário também acontece, no que ele chama de negação seletiva.
"Os fatos que desmentem ou que não se encaixam direito com a narrativa pré-estabelecida são negados ou postos em dúvida”, explica.
Na esquerda, o exemplo de 'ceticismo seletivo', termo usado pelo também professor da USP Pablo Ortellado, que gerencia o monitor, se deu no atentado contra o candidato Jair Bolsonaro (PSL).
"No Twitter, houve pessoas céticas levantando a suspeita de que o atentado poderia ter sido uma farsa para promover o candidato do PSL”, explicou Marcio Moretto. O monitor identificou 42 mil compartilhamentos de publicações com tom de teoria da conspiração.
Apesar disso, as publicações de páginas de esquerda mais compartilhadas foram mensagens de repúdio irrestrito ao atentado, com 91 mil compartilhamentos naquele dia. O discurso com tom "colheu o que plantou" foi o segundo mais disseminado por este setor.
Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) isentou os portugueses pelo tráfico de pessoas a serem escravizadas no Brasil. "Portugueses nem pisaram na África", declarou. No entanto, é consenso entre historiadores que o tráfico era comandado por portugueses. No transporte da África para o Brasil as condições eram desumanas, muitos morriam antes de chegar ao país, sendo os corpos lançados ao mar.
No início do mês, uma publicação da Embaixada Alemã em Brasília repercutiu na internet. O órgão fez um vídeo educativo sobre os horrores do nazismo alemão e de como o país lida com este passado. A publicação virou alvo de ataques e contestações por parte de brasileiros, que acusaram o regime de ser de esquerda. No vídeo o ministro das Relações Exteriores alemão, Heiko Mass, diz que a população não deve se opor aos extremistas de direita: "Não devemos ignorar, temos que mostrar nossa cara contra neonazistas e antissemitas", afirma.
A professora de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marieta de Moraes Ferreira reforça o papel da sociedade civil organizada para defender a memória dos grupos sociais. "O Museu do Holocausto, na Alemanha, é fruto de uma ação constante da comunidade judaica no sentido de estar sempre lembrando esse assunto, para que não seja esquecido, justamente porque a memória está sempre em modificação."
Marieta ressalta a diferença entre Memória e História ao analisar o passado. “Memórias são lembranças do passado de uma forma mais livre. São sempre muito seletivas. Elas são lembradas, esquecidas ou distorcidas de acordo com as conjunturas e com o interesse daquela pessoa, ou daquele grupo”, diz. Marieta explica que a História pode ter interpretações diferentes, mas os métodos de investigação histórica garantem a veracidade de um fato. “A História tem uma série de procedimentos e regras para verificar um passado com documentos, notícias de jornais da época e documentação policial, por exemplo. Essa confrontação entre diferentes tipos de documentos que garante a fidedignidade do fato”, explica.
A psicanalista Olivia Porcaro contextualizou esta polarização em uma sociedade ‘narcísica e hedonista’, onde as pessoas estão cada vez mais acostumadas a conviver com o prazer e menos com a frustração e com as diferenças.
Ela lembra que a negociação da diferença é adquirida ao longo do desenvolvimento emocional, quando há a percepção do outro e as diferenças são respeitadas e negociadas. "A gente espera da criança que ela compreenda que bom e mau fazem parte das mesmas pessoas. O namorado, a amiga, o parente têm qualidades ótimas e têm defeitos. Você entende a alteridade - capacidade de se colocar no lugar do outro em uma relação - e que a pessoa pode ter uma opinião diferente da sua, mas no fim das contas, todos podem conviver”. Ela conclui que o oposto do radicalismo é a reflexão e o pensamento. "A polarização impede que pessoas que pensam diferente possam se unir".
Polarização se intensifica desde as jornadas de junho de 2013
O debate político se estruturou nesta dinâmica polarizada com as manifestações de junho de 2013. A análise é do coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital Marcio Moretto Ribeiro. "Até meados de 2013, o debate político tinha uma outra estrutura, muito menos polarizada, era muito mais rica, por assim dizer, com muito mais nuances”, diz. Ele explica que no fim daquele ano uma parcela importante dos usuários que acompanhavam o debate pelas redes sociais sem tomar lado polarizou com a esquerda. “Esse campo anticorrupção era menos politizado, menos alinhado com a política institucional e passou a se deslocar para o campo antipetista”.
No fim de 2013, a polarização se estabeleceu: esquerda de um lado, e antipetismo de outro. Desde então, este processo vem se intensificando. O pesquisador da USP explica que 80% dos brasileiros têm acesso ao Facebook, destes, aqueles que discutem temas políticos, é uma minoria. São entre 10 e 15%. “O que estamos vendo nestas eleições é que a dinâmica polarizada que coloca a esquerda de um lado e o antipetismo de outro está extrapolando o campo do Facebook e chegando ao eleitorado como um todo. A dinâmica eleitoral parece estar incorporando a dinâmica das redes sociais de engajamento."
Marcio Moretto explica que este processo começou a ser visto nas últimas eleições gerais de 2014. "Em 2002, Lula foi vitorioso por uma campanha de marketing que conseguiu elegê-lo como 'Lulinha Paz e Amor'. Em 2014, a aposta da campanha de marketing não foi mais de vender uma imagem palatável para o eleitorado. A imagem de ‘Dilma valente’ cola muito mais com a militância engajada das redes”, compara. Ele destaca que as campanhas visam a engajar as pessoas para que essas convençam o eleitorado. “A campanha do Bolsonaro é de engajamento da militância pra disputar os discursos na internet, no WhatsApp, nos grupos de família. É assim do outro lado também”, finaliza.