Baile de confete, em 1919: felicidade por estarem vivos  - Revista Careta - Acervo Casa Rui Barbosa
Baile de confete, em 1919: felicidade por estarem vivos Revista Careta - Acervo Casa Rui Barbosa
Por Thiago Gomide
O Carnaval de 1919 parecia a redenção. O encontro dos vivos. O brinde a carne. O extravasar depois de um contato tão próximo com a finitude.
Nas festas de rua ou nas festas de clubes, como no Democráticos, no centro da cidade, a turma bebia e cantava até não poder mais.
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“Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria./ Quem não morreu da espanhola,/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, toca a brincar...”, falava uma das inúmeras marchinhas.
A Espanhola era a gripe. Mas não era uma gripe qualquer. Seu poder ofensivo e seus danos eram enormes. Entrou de navio em nossas terras, vinda da Europa, trazendo no currículo milhões de mortos.
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Por aqui foi devastadora.
Outubro de 1918 nos remete a uma cidade desesperada.
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Não tinham médicos. Não tinham leitos. Não tinham hospitais. Não tinha nada, praticamente. O cenário era terrível.
Pense em doentes nas ruas vomitando sangue. Pessoas tendo alucinações e não falando lé com cré. Várias berrando de dor. Em diversas casas, panos pretos eram colocados na janela. Sabe para quê? Para avisar que tinham vítimas da gripe espanhola ali.
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Era um aviso para alguém jogar uma comida, que estavam precisando de socorro. Quem ajudou muito nessa situação foram os policias, os lixeiros...
O número de mortos foi crescendo de forma absurda. A cada dia morriam 500 pessoas por causa da gripe.
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No começo ainda dava para controlar os enterros. Depois foi faltando até madeira para fazer caixão. E os corpos? No auge da crise, a turma foi colocando cadáveres no meio da rua. Passava a carroça do lixo e levava embora.
Às vezes a pessoa nem tinha morrido, mas era carregada. Um horror.
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Você deve estar se perguntando: e os coveiros? Não tinha número suficiente. A solução foi pegar presos.
Abriram a cadeia. Horror ao quadrado: muitos cadáveres tiveram seus dedos cortados para o roubo de anéis, cabeças degoladas para tirar um cordão e por aí seguia o teatro do absurdo.
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Como pode-se imaginar, não havia espaço para rituais religiosos. Muitas pessoas foram enterradas em cova rasa, sem identificação. Muitos foram empilhados e incinerados.
Entre tantas histórias surreais que eu conheço dessa época, uma envolve os bombeiros. A canja de galinha ajudava na recuperação da gripe, diziam os médicos. E os bombeiros ficaram responsáveis por vender galinhas. Só eles podiam vender.
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Não é que fizeram um mercado paralelo de galinhas? Teve briga na cidade por causa de galinhas. Quebra-pau.
O comércio, em geral, fechou. Uma exceção: as farmácias deixaram as portas abertas. Não sem motivo: remédios ditos milagrosos vendiam como água mineral no Rio de Janeiro de hoje.
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No Brasil, a situação foi se normalizando pouco a pouco após a chegada de Carlos Chagas a diretoria de saúde. Ele convocou médicos, abriu hospitais de emergência, postos de atendimentos espalhados por tudo que é canto, cruzou informações com outros pesquisadores, na Europa, nos Estados Unidos...
A Espanhola saiu como entrou.
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Em tempo: Carlos Chagas chegou a ter a doença, mas conseguiu sobreviver. O que não aconteceu com o presidente eleito Rodrigues Alves, que faleceu em janeiro de 1919, não assumindo o posto.
Estima-se que cerca de 35 mil brasileiros morreram. No Rio de Janeiro, uma cidade com 1 milhão de habitantes, é calculado que 600 mil pessoas pegaram a doença e 15 mil não resistiram.
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Não era para curtir muito a folia depois desse caos?
9 meses depois nasceram diversos bebês. Eles são chamados de “filhos da gripe”.
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Descrença das autoridades
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Nossos representantes duvidaram que a gripe poderia chegar ao Brasil.
Não os protegemos. Não desenhemos saídas.
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Deu no que deu.
Lembrem disso sempre.
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Caipirinha era remédio contra Espanhola?
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Os médicos, além de canja de galinha, indicavam o consume de limão e canela.
Uma corrente histórica defende que a caipirinha, patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, nasceu nesse instante em...São Paulo.
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Era um tipo de elixir contra a doença. A fórmula mágica era bem diferente, mas a alma, dizem os especialistas, a mesma.
A cachaça era usada para potencializar os efeitos.
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Por qual motivo é espanhola?
Porque estávamos na Primeira Guerra. Imprensa limitada.
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A Espanha não estava na guerra, sem soldados nas trincheiras.
Ou seja, sem censura, disse o que estava acontecendo.
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Pimba. A doença ficou atrelada ao país que não tinha nada com isso.
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Quer saber mais?
Tem diversos livros, mas indico a leitura do texto "O Carnaval, a peste e a 'espanhola'", do Ricardo Augusto dos Santos, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.