Presidente do Instituto de Proteção das Garantias Individuais, Carlos Eduardo GonçalvesDivulgação

Presidente do Instituto de Proteção das Garantias Individuais, Carlos Eduardo Gonçalves é advogado criminalista e professor de direito penal e de direito processual penal. Em entrevista a O DIA, ele fala da superlotação de crimes de bagatela nos tribunais e explica que "o sistema de execução penal como um todo é um reflexo da sociedade em que vivemos". Em outubro, o caso de uma mulher que foi presa, acusada de roubar macarrão instantâneo, levantou debates na sociedade e no meio jurídico. Na semana passada, o STF mandou soltar a mãe de uma criança, presa há mais de 100 dias, por continuar usando a água de casa, mesmo estando inadimplente com a empresa.
O DIA: O que são os "crimes de bagatela"? Por que é importante falar sobre isso?
Carlos Eduardo: São crimes em que o valor do prejuízo não atinge a relevância exigida pelo Direito Penal. O furto de uma galinha ou de alguns pacotes de miojo, por exemplo, representam crimes de bagatela. São furtos de valores insignificantes. O código penal criminaliza aquele que "subtrai coisa alheia móvel". Quem praticar essa conduta já está formalmente praticando crime de furto. É de suma importância discutir a criminalização dessas condutas e entender o que queremos enquanto sociedade.
O que a superlotação desses crimes de bagatela nos tribunais, de acordo com a sua experiência, dizem a respeito do Brasil? Qual o custo disso?
O sistema de execução penal é um reflexo da nossa sociedade. A cultura do esquecimento e da exclusão dessas pessoas do convívio social criam uma falsa sensação de punição individual, mas indiretamente é a falência de todo o Estado. Não existem estimativas oficiais, mas posso dizer que cerca de 80% dos casos que chegam aos tribunais superiores dizem respeito a crimes de bagatela. Isso é inadmissível.
Quais são os efeitos, no Direito e na sociedade, da aplicação das "excludentes de tipicidade"? O que isso significa? 
Em uma linguagem simples, podemos dizer que tipicidade é a conformidade de um fato com a descrição de um crime no código penal. A excludente de tipicidade, por sua vez, ocorre quando um fato é formalmente considerado crime, mas por algum motivo passa a não ser enquadrado como tal. Por exemplo: o furto de uma galinha, de acordo com o Código Penal, é crime. Mas o prejuízo ao patrimônio do dono é tão pequeno que o juiz pode considerar que não houve crime. O objetivo principal do Código Penal, ao tipificar o furto, é proteger o patrimônio da vítima. No furto da galinha, o patrimônio da vítima realmente está sendo atingido? Não. O valor de uma galinha é irrisório. Não podemos considerar este furto como fato típico. Não é crime! 
Por que não dedicar esforços na punição de crimes mais danosos à sociedade em vez de prender pessoas que roubam por fome?
Vivemos a cultura do punitivismo. É comum escutarmos que o Brasil é o "país da impunidade", mas na verdade somos o país que mais pune no mundo. O problema é: o que estamos punindo? As classes sociais mais pobres são excluídas por meio do direito penal. Entre tantas outras questões, é isso que se busca evitar com princípios como o da bagatela. 
É discutido, na reforma do Código Penal, a anulação do artigo que diz que se a audiência de custódia não ocorrer no prazo que determina a lei (24 horas), a prisão passa a ser ilegal. Como o senhor enxerga isso?
E isso é bom pra quem? Essa é uma garantia constitucional do cidadão, que não deve jamais ser excluída. As autoridades precisam entender que 24 horas é muito tempo para quem é preso injustamente. E o judiciário não pode pensar diferente disso. Espero que o Supremo Tribunal Federal decida pela constitucionalidade e manutenção dessa norma.
Seria possível amenizar a sobrecarga nos tribunais? Como? 
Os tribunais superiores atribuem a sobrecarga à quantidade de recursos existentes no Código de Processo Penal. Isso é mentira. Se precisamos chegar ao Supremo Tribunal Federal para discutir a prisão de uma senhora por um miojo, será que a culpa está mesmo na quantidade de recursos? Ou os juízes de instâncias inferiores precisam ter mais responsabilidade ao proferir suas decisões?