Professora de Direito da UFRJ, Kone Cesário coordenou o projeto 'Maria da Penha Virtual'Acervo Pessoal

Professora de Direito da UFRJ, Kone Cesário é coordenadora do web aplicativo Maria da Penha Virtual, desenvolvido por alunos da universidade em 2020 e implementado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Na entrevista a O DIA, na véspera do Dia Internacional das Mulheres, Cesário conta como surgiu a ideia, fala sobre os próximos passos e sobre a violência doméstica na sociedade. “Como acadêmica, me interessa muito desenvolver algo para ajudar nas políticas públicas a favor da mulher”, destaca.
O DIA:Qual foi a maior dificuldade no desenvolvimento do app?
KONE:Primeiro, que, embora seja uma tecnologia, partiu de um curso de Direito – e a área de Humanas costuma ter menos verba para pesquisa. Vivemos num país onde há falta de recursos. E o Maria da Penha Virtual trouxe visibilidade. Nosso trabalho é como o de um vendedor de livros, indo de casa em casa — ou melhor, de tribunal em tribunal, oferecendo o projeto. Fora o entrave da burocracia do sistema público, como o tempo que se leva para assinar documentos. Há falta de integração entre os órgãos públicos.
Qual é o diferencial do aplicativo?
Como acadêmica, me interessa muito desenvolver algo para ajudar nas políticas públicas a favor da mulher. O grande diferencial é que o app ataca o problema na intimidade, entra na casa dela, sem ela precisar se deslocar, mandando até provas, como fotos ou filmagens, pois a violência nem sempre é física. Os alunos viram uma reportagem sobre o aumento dessa violência na pandemia e a dificuldade para as mulheres fazerem pedidos de medidas protetivas. Eles já vinham estudando formas de a tecnologia facilitar o acesso à Justiça.
Por que o acesso ao app ficou restrito à cidade do Rio por mais de um ano e demorou a se expandir?
Mesmo sendo um dos mais informatizados do mundo, ainda vemos burocracia no Judiciário. Quando o TJ implementou o app, o próprio órgão passou a administrá-lo. E a troca de gestão faz o histórico se perder. Até outubro, foram 680 pedidos; estimamos que hoje haja cerca de mil. Não temos mais acesso ao número das medidas até o momento.
A violência doméstica afeta mulheres de todas as classes. Há diferenças em relação a como a vítima lida com a questão?
No app, ainda não temos como precisar a forma com que a população lida com a violência, pois precisaríamos de outra pesquisa para fazer cruzamentos. Mas podemos dizer, talvez, que na classe alta, há mais violência moral/patrimonial, mulheres que dependem do companheiro. Não acredito que haja menos violência na classe A ou B, o que acontece é que, culturalmente, a mulher pode não buscar ajuda. Às vezes, ela nem consegue entender que está sendo violentada.
Qual é o futuro do Maria da Penha Virtual?
Neste mês, o TJ da Paraíba deve implantar o aplicativo. Além disso, estamos desenvolvendo outras tecnologias para facilitar o acesso e a mensuração de dados – para os tribunais se direcionarem melhor e deslocarem juízes para deferir as medidas. O app tem potencial para aplicabilidade, podendo ser usado por qualquer órgão público interessado. Ganhamos o prêmio Desafio Pro Bono, do Instituto Pro Bono, para expansão do projeto Maria da Penha Virtual para ONGs e escritórios de advocacia. O Tribunal de Tocantins também está interessado em implementar o aplicativo. Estamos fazendo contato aos poucos.
Como o app vai operar na Paraíba? Será diferente do Rio?
Sim. Terá uma plataforma web para gestão dos pedidos de medida protetiva e acesso aos dados estatísticos pelos servidores do tribunal, a possibilidade de a Defensoria Pública gerar o pedido e fazer o download da petição e uma calculadora do risco de vida da vítima a partir do próprio formulário do aplicativo. A versão do RJ só permite a geração do pedido e o envio ao tribunal.
Em 15 anos de Lei Maria da Penha, há ainda subnotificação em casos de violência doméstica?
Não vejo que o quadro melhorou muito. Há vítimas que chegam à delegacia e são constrangidas por agentes. Ou seja, em vez de serem atendidas, ainda veem a violência sofrida ser questionada. Daí, a mulher volta para a casa e continua sendo agredida — o que pode acabar em feminicídio.