Mayra Goulart, cientista política
Mayra Goulart, cientista políticaAcervo Pessoal
Por Sidney Rezende
A disputa política entre Bolsonaro e Lula terá influência inevitável nas disputas estaduais na eleição de 2022. Pelo menos é esta a conclusão preliminar feita pela cientista política Mayra Goulart. "Teremos um pleito marcado pela dicotomia entre Lula e Bolsonaro. Falo em dicotomia, pois o termo polarização leva a um equívoco grave: a pressuposição de que há simetria no posicionamento ideológico de ambos, quando, de fato, temos um representante da extrema direita, com um discurso radical e beligerante. Contra ele, há um líder de uma esquerda moderada que se movimenta para capitanear uma frente ideologicamente heterogênea, mediante a atração de todas as forças dispostas a entrar na composição, incluindo aquelas que durante os últimos dois anos orbitaram o espectro bolsonarista", diz. Professora de Ciência Política da UFRJ, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ e Coordenadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada, Mayra acredita que as milícias continuarão influenciando nas eleições. "A relação do crime organizado com a política se agrava a cada pleito, sobretudo após a reforma eleitoral de 2015 que proibiu doações de campanha por parte de pessoas jurídicas e, subsequentemente, ampliou o papel de contribuições individuais, cuja origem é mais difícil de ser rastreada por parte dos órgãos de controle".
Qual será a característica da eleição 2022 no nosso estado?
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O Estado do Rio de Janeiro, em virtude do seu passado como capital do país, tem sua política configurada a partir de componentes locais e nacionais. Começando pelos últimos, teremos um pleito marcado pela dicotomia entre Lula e Bolsonaro. Falo em dicotomia, pois o termo polarização leva a um equívoco grave: a pressuposição de que há simetria no posicionamento ideológico de ambos, quando, de fato, temos um representante da extrema direita, com um discurso radical e beligerante. Contra ele, há um líder de uma esquerda moderada que se movimenta para capitanear uma frente ideologicamente heterogênea, mediante a atração de todas as forças dispostas a entrar na composição, incluindo aquelas que durante os últimos dois anos orbitaram o espectro bolsonarista.
A disputa será ideológica entre direita e esquerda?
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Não. Como mencionei anteriormente, a nacionalização que vertebra ideologicamente o pleito é apenas um dos componentes, sendo o elemento local determinado a partir de dinâmicas que, embora marcadas por forte carga ideológica, são entendidas pela população sob a chave da gestão. Nessa categoria, podemos listar, como exemplo, a pandemia e a violência urbana, cujas alternativas para o combate (negacionismo x restrições acompanhadas de repasses do Estado; legitimação x crítica ao uso da violência policial) dividem a população seguindo a escala ideológica, porém, são ressignificadas discursivamente como questões técnicas. Tradicionalmente, as discussões a esse respeito ganhariam feições plebiscitárias no tocante à gestão do governador incumbente, porém, nessa eleição há um vácuo de poder, na medida em que Cláudio Castro não é uma figura conhecida do grande público. Essa conjuntura aumenta as atenções em torno da gestão de Eduardo Paes que, a meu ver, será o grande cabo eleitoral na disputa, ao lado de Lula e Bolsonaro.
No pleito do ano que vem, também será a oportunidade do eleitor escolher votar para a Câmara e o Senado. O Rio é displicente na escolha dos melhores nomes que possam defender os interesses do eleitor e do Estado? O eleitor sabe a diferença entre as duas casas?
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O eleitor fluminense não é menos informado ou consciente do que os das demais unidades federativas. O que me parece diferente aqui é o desalento. Uma continuada crise econômica, cujas origens podem ser remontadas ao processo de transferência da capital para Brasília, agravada pelo baixo preço das commodities, somada a um também continuado e ainda mais radical descalabro em termos de segurança pública, geram no eleitor uma sensação de maior ceticismo conquanto as suas elites políticas. No entanto, sobretudo no tocante à eleição para a Câmara, acredito que o interesse pode ser estimulado pela discussão de temas mais próximos aos diferentes segmentos populacionais, que dizem respeito a questões locais mas, também, à representação de identidades e interesses plurais mais específicos e nichados. Esta, aliás, é a vocação do Legislativo, sobretudo em sistemas eleitorais proporcionais. Neste tipo de sistema, há uma maior possibilidade de que preferências não majoritárias sejam representadas por meio da agregação dos votos de minorias de diferentes regiões dentro de um distrito eleitoral, uma vez que estes tendem a ser consideravelmente maiores do que quando comparamos com os sistemas eleitorais majoritários ou mistos.
Os temas a serem discutidos serão mais nacionais ou estaduais?
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Estamos em um contexto de emergência de novas elites municipais que utilizarão este pleito para testar sua viabilidade no plano estadual. É o caso de alguns nomes que articularam, na eleição de 2020, o chamado consórcio das esquerdas, formado por Axel Grael (PDT), apoiado pelo ex-prefeito de Niterói Rodrigo Neves; pelo prefeito de Maricá, Fabiano Horta (PT), eleito com 88,09% de votos e que quase elegeu seu aliado Dimas Gadelha (PT), em São Gonçalo. Gadelha que se manteve à frente durante todo o pleito, foi derrotado na reta final do segundo turno, quando Jair Bolsonaro, preocupado com a expansão dessa frente de esquerdas no Rio de Janeiro, seu reduto eleitoral, gravou um vídeo em apoio ao seu rival Capitão Nelson (Avante). Horta, que é herdeiro da gestão de Washington Quaquá no município e conta com seu apoio na articulação entre as legendas de esquerda, tem uma gestão bem avaliada e acabou de ser elogiado por Eduardo Paes pela decisão de negociar e comprar diretamente as vacinas a serem distribuídas em Maricá. Em março, em seu Twitter, quando perguntado se faria o mesmo, Paes respondeu: "Sempre disse isso e nunca entenderam. Já estou em contato com o super Fabiano Horta (prefeito de Maricá) para ver como sigo sua liderança”. Essa é uma sinalização interessante, assim como a recente troca de partidos realizada pelo incumbente carioca. Acompanhado por Rodrigo Maia, Paes deixa o DEM para integrar o PSD em busca de um espaço de maior autonomia com relação ao espectro bolsonarista para atuar como articulador de forças ao centro do espectro político. Essa movimentação reforça ainda mais o seu papel na eleição de 2022, no plano nacional, o que contempla um possível apoio a Lula no segundo turno, e no plano local – mesmo que seu possível candidato ao governo do Rio, o presidente da OAB Felipe Santa Cruz, não esteja bem posicionado nas pesquisas. Cabe mencionar também que há uma articulação análoga no campo da direita, que tem como principal liderança o prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (MDB), acompanhado de outros nomes da Baixada Fluminense como os prefeitos de Nova Iguaçu, Rogério Lisboa (PP), e de Belford Roxo, Wagner dos Santos (MDB). Embora haja um esforço de Cláudio Castro (PSC) para incluí-los em uma chapa capitaneada por ele, com o apoio de Jair Bolsonaro, Lisboa como vice e Reis como candidato ao Senado, essa articulação pode ser fragilizada em virtude da emergência de Lula no cenário nacional e das subsequentes movimentações de Eduardo Paes. Esses dois processos estão relacionados e aumentam a desidratação da popularidade do presidente entre as elites políticas e os cidadãos, em uma dinâmica agravada pelo destaque dado pela mídia às investigações realizadas durante a CPI da Covid. Esses fatores, a meu ver, tendem a aumentar a força das frentes de centro e de centro-esquerda, reduzindo a atratividade exercida pelo presidente entre membros do Congresso Nacional e sobre futuros candidatos ao pleito estadual.
O PSOL está rachado entre os que acham que se deve buscar aliados no centro e os que preferem uma chamada esquerda puro-sangue. Esta discussão é produtiva?
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É produtiva para as lideranças do PSOL que disputaram a eleição e que ganham votos para as eleições proporcionais entre segmentos da população que vibram com discursos sectários e de purismo ideológico. Para aqueles que almejam a vitória de uma força de esquerda para cargos majoritários (Senado, Governo Estadual e Presidência da República), é em muitos casos uma condenação à irrelevância. Na minha opinião, o PSOL prestaria um melhor serviço à população se buscasse esses votos aproveitando a vocação das eleições proporcionais, discutindo temas afeitos às minorias demográficas, não demográficas e às diferentes categorias profissionais, enriquecendo, com isso, o repertório de alternativas, soluções e reflexões à disposição da sociedade civil.
A senhora acredita que as milícias tentarão eleger aliados para a Alerj no ano que vem?
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Certamente. A relação do crime organizado com a política se agrava a cada pleito, sobretudo após a reforma eleitoral de 2015 que proibiu as doações de campanha por parte de pessoas jurídicas e, subsequentemente, ampliou o papel de contribuições individuais, cuja origem é mais difícil de ser rastreada por parte dos órgãos de controle.
A segurança pública é um tema vital a ser discutido?
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O mais importante, na medida em que esta discussão não faz sentido se desarticulada dos elementos econômicos e sociais que atuam nessa equação. A criminalidade serve de argumento para o uso da violência contra as classes populares. O apoio das classes média e alta a esse projeto abjeto só será revertido pelo engajamento paciente daqueles que estão dispostos a compor um discurso que não conte com a empatia como pressuposto, mas como o resultado desejável de um processo de aprendizado. É preciso explicar que o uso da violência não gera bons resultados e que as classes populares, sobretudo os favelados, não são uma ameaça a ser combatida.
O combate à pobreza nas favelas do Rio é considerado assunto prioritário para a elite política fluminense?
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Não, exatamente porque, se encampado com ênfase, pode afastar o eleitor das camadas média e alta que não possuem empatia pelas classes populares e veem nos favelados uma ameaça. Essa mentalidade é a raiz do estado de paralisia econômica, agonia social e descontrole da violência que vivemos no Rio de Janeiro, uma vez que qualquer solução eficaz para os três problemas depende desta empatia – ou philia, termo utilizado na Grécia clássica para denominar os vínculos entre os cidadãos de uma mesma comunidade.