Ana Botafogo, bailarinaMário Veloso

Os 45 anos de carreira da bailarina Ana Botafogo foram registrados em um livro escrito por seu pai, Ernani Ernesto Fonseca. "Ana Botafogo: palco e vida" será lançado na próxima quarta-feira (1º). Em entrevista ao jornal O DIA, Ana Botafogo fala do livro, balé, além de arte e cultura em tempos de pandemia. " É preciso incentivo privado e do governo para que novas políticas possam ser pensadas e executadas. Eu sempre sou a favor que incentivos venham do governo, mas também do setor privado. E cada indivíduo é responsável pela sua própria cultura. Ajudarmos o próximo em termos de cultura e produção artística é fundamental, assim como é fundamental a liberdade de expressão", disse. No Rio, o Theatro Municipal foi palco de grandes apresentações da bailarina, que exalta o local. "É o propulsor da arte, guardião da arte erudita, canto, música e dança, e apresenta toda forma de arte para todos os que estão no Rio de Janeiro. Tem uma posição fundamental para a cultura da cidade".
Como foi o início de sua carreira e quando se deu conta de que poderia ser uma bailarina profissional?
O início do meu aprendizado de balé foi perto de casa, uma brincadeira de criança, no Conservatório de Música da Urca. Mas o início foi também inusitado. Foi quando eu fui estudar em Paris e resolvi tentar uma audição, um teste, e recebi meu primeiro contrato profissional. Totalmente inesperado. Dancei no ballet de Marseille, do coreógrafo Roland Petit. Foi um excelente começo. Uma grande companhia com muitos estrangeiros, mas a gente viajava e dançava bastante. Sobretudo a organização, a administração, era impecável. Acho que isso foi excelente pra uma jovem bailarina. Quando eu pensei que eu seria uma profissional? Acho que foi a partir dali. A partir do primeiro dia, da primeira semana que eu me apresentei na companhia em Marseille, eu vi que aquilo era para mim. E, desde então, me dediquei muito, não só ao aprendizado, mas ao aperfeiçoamento - a vida da bailarina é se aperfeiçoar sempre. Claro, ao longo desse tempo todo, eu que tive uma carreira longa, mesmo depois de ser uma primeira bailarina que eu me tornei aqui, já no Brasil… Depois do Roland Petit, eu dancei na Associação de Balé do Rio de Janeiro e, há 40 anos, eu entrei no Theatro Municipal como primeira bailarina. Lá atrás, na França, eu me dei conta de que eu seria, sim, para o resto da vida, uma bailarina profissional.
Quais são suas referências artísticas no Brasil?

As minhas referências artísticas são muitas. Claro que dentro da dança também. Eu quando estudava balé, logo no início da carreira, tinha como minhas grandes referências as grandes mestras. Não só a minha mestra, enquanto educadora, que foi a Leda Iuqui, a dona Eugênia Feodorova, Tatiana Leskova e Dalal Achcar e Márcia Haydée - que foi também, durante, muitos anos, uma musa inspiradora. Bailarina brasileira que fez carreira na Alemanha, era um nome mundialmente conhecido, criou vários papéis, alguns que tive oportunidade de dançar no Brasil. Então, Márcia Haydée foi uma inspiração como bailarina; as outras, como mestras e professoras. Claro que tive referências aqui mesmo no Rio, como Deborah Colker, Alex Neoral, que já é de uma geração mais jovem. E preciso falar também que além de quem eu admirava, pessoas depois de mim vieram e que também passaram a virar grandes referências, como Cecília Kerche, uma grande primeira bailarina do Rio do Theatro Municipal com quem dividi muitos papéis, uma referência como profissional e bailarina, com uma linda carreira internacional também. E hoje eu preciso dizer também, para citar apenas dois, Amanda Gomes e Daniel Ferreira. Na música, eu tive grandes inspirações, como Bethânia, Oswaldo Montenegro, Carlinhos Brown, Roberto Carlos, que fez parte da minha adolescência, Leo Jaime; sou bem eclética. Nas artes plásticas: Tereza Miranda, Dolino, Portinari - não podemos deixar de falar dele, eu dancei em homenagem a ele também. Isso para falar assim apenas numa pincelada muito rápida.
Até hoje, a sociedade vê o balé como uma arte feminina. Essa realidade está mudando em que velocidade? A entrada de bailarinos homens ainda encontra preconceito?
A dança a gente vê muito como uma arte feminina, mas a entrada dos bailarinos homens aqui no Brasil tem melhorado muito. Claro que sempre houve certo preconceito, mas a escola do Bolshoi ajudou muito a reverter um pouco essa ideia de que não era uma carreira/trabalho apropriado para o rapaz. Hoje em dia, a escola do Bolshoi, em Joinville, forma bailarinos a cada ano, e esses bailarinos estão, sim, em muitas companhias no mundo trabalhando. Aqui, o Brasil tem abraçado poucos desses bailarinos, porque temos um campo de trabalho restrito, infelizmente. Há ainda um certo preconceito, mas isso já melhorou muito. Nesses meus últimos 40 anos de vida, eu vi isso mudar muito e hoje nós vemos meninos de 8,10 anos fazendo balé. Claro que a escola Bolshoi é uma escola profissionalizante e que prepara muito bem esses bailarinos. As mídias sociais são importantes para divulgar o trabalho não só da escola, mas desses meninos bailarinos. Isso vai estimulando outros brasileiros Brasil afora. Sonho em ver muitos bailarinos dançando, cada vez começando mais cedo, porque quando o bailarino começa cedo na sua educação, eles conseguem uma técnica maior quando são adultos. Esse era o grande problema 30, 40 anos atrás, quando as meninas começavam cedo, mas os rapazes começavam mais tarde. Então tinha uma defasagem técnica na preparação entre bailarinos homens e bailarinas mulheres.
O livro “Ana Botafogo: palco e vida” reúne 45 anos de sua trajetória e foi escrito por seu pai. Qual a importância do senhor Ernani Ernesto Fonseca na sua formação e carreira?
O livro "Ana Botafogo: palco e vida" conta tudo da minha trajetória, tudo da minha vida, desde que eu nasci até me tornar bailarina profissional. Toda minha trajetória de espetáculos e críticas e matérias sobre esses espetáculos. Foi uma pesquisa enorme que meu pai fez ao longo de muitos anos. Meu pai é médico cirurgião, atuante até os 89 anos. Então ele, na minha formação, me deu possibilidades de aprender, de me aperfeiçoar, me possibilitou viajar quando precisei de um aperfeiçoamento. Ele não era um expert na dança, mas a importância dele foi orientar a filha e estimular o estudo. Sempre estiveram perto me dando apoio ele e minha mãe, por trás das minhas alegrias, tristezas, vitórias e desafios. Acho que a grande importância do meu pai e da minha mãe foi estarem presentes dando o apoio necessário para que eu pudesse ter essa carreira. Muitas vezes, ele me dava tranquilidade para que eu pudesse me dedicar absolutamente à minha arte.
Há uma parceria com o Instituto Bees of Love e parte da renda da venda do livro será revertida para a reforma da Maternidade do Hospital Municipal Miguel Couto. Como foi feita essa parceria e a decisão do que fazer com parte da verba da venda?
A parceria com a Bees of Love está sendo uma alegria enorme. Eu conheci o Instituto há dois anos, quando fizemos um espetáculo em benefício ao Theatro Municipal. De lá para cá, tivemos um bom contato e surgiu de uma boa conversa com a Georgia Buffara, presidente do Instituto. "Por que não usar a vida de uma artista para fazer o bem?". Ela achava importante guardar a memória, passar para as novas gerações a história de uma artista brasileira que teve sucesso e êxito no seu próprio país e que viveu da dança por tanto tempo. Ela achava que era importante o Instituto também ajudar nessa parte, e que poderíamos fazer uma parceria e que a arte de uma artista brasileira ajudaria em uma causa social. Ao pensar em tantas causas a que o Instituto serve, inclusive durante a pandemia, em que foram muito atuantes, distribuindo cestas básicas e insumos para hospitais, chegamos à maternidade do Miguel Couto. Por ser meu pai médico, achamos que era uma boa ideia unir a arte, a medicina, a ação social e a memória. Unir tudo isso num único momento. Foi isso que o Bees of Love proporcionou: a gente lançar esse livro e fazermos tudo em prol da maternidade. É uma linda homenagem ao meu pai, é coroar a vida dele, que foi totalmente dedicada à medicina, isso até bem pouco tempo.
O livro será lançado no dia 1º de setembro, com uma tarde de autógrafos numa área aberta do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Qual a importância do Theatro Municipal para o balé e para a cidade?

O Theatro Municipal é o propulsor da arte, guardião da arte erudita, canto, música e dança, e apresenta toda forma de arte para todos os que estão no Rio de Janeiro. Tem uma posição fundamental para a cultura da cidade. O Rio tem sofrido por não ter suas portas abertas (na pandemia). Estou celebrando meus 40 anos de Theatro Municipal e, então, o teatro vai fazer parte dessa comemoração. Além disso, dia 1º é o Dia da Bailarina. O balé do Municipal, que existe desde 1927 e sempre foi muito importante para a instituição, está sofrendo muito na pandemia, com a falta de espetáculos.
O que o poder público deveria fazer para incentivar a arte e a cultura, tanto na cidade, quanto no estado e no país?

A arte deve ser incentivada como um todo. No caso da dança, há muitas perdas na pandemia. Muito se fez ao ar livre, mas a dança precisa de locais adequados. Durante a pandemia, usou-se de toda a criatividade e tecnologia em prol do fazer artístico da dança. Mas é necessário que a dança volte ao palco, que as companhias voltem a trabalhar. É preciso incentivo privado e do governo para que novas políticas possam ser pensadas e executadas. Eu sempre sou a favor que incentivos venham do governo, mas também do setor privado. E cada indivíduo é responsável pela sua própria cultura. Ajudarmos o próximo em termos de cultura e produção artística é fundamental, assim como é fundamental a liberdade de expressão.
A arte é um ato político? Com uma polarização política crescente e fake news, sobrou também para a classe artística como um todo, com perdas de investimentos. Como mudar a forma das pessoas pensarem e valorizarem a cultura brasileira?

O fazer artístico com honestidade e lealdade ao palco e à própria arte é a única maneira de valorizarmos a cultura brasileira. Então, é isso que vai fazer as pessoas mudarem em relação à cultura. É fundamental para que as pessoas vejam a arte com a importância que ela deve ter.