Jacqueline Muniz, professora de Segurança PúblicaReprodução/Rede Minas de Televisão/Arquivo

Integrante da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, a professora Jacqueline Muniz tem amplo conhecimento sobre os assuntos, já tendo exercido as funções públicas de diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública – SENASP/Ministério da Justiça (2003); coordenadora Setorial de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos (2002) e diretora da Secretaria de Segurança Pública (1999) Governo do Estado do Rio de Janeiro. Para Jacqueline, "a insegurança pública tornou-se um projeto político altamente lucrativo que tem dado certo para os senhores da guerra que promovem a cortina de fumaça do 'tiro, porrada e bomba', para os mercadores da proteção que exploram ilegalmente os serviços essenciais nas periferias e para os profetas do caos que controlam os votos pregando o terror e promovendo ameaças nas periferias", explica em entrevista ao jornal O DIA.
Professora, a senhora acompanha há anos o desenrolar do mapa da violência e criminalidade no Rio. Em que estágio estamos?
No Rio de Janeiro, temos dado 1 passo para frente e 2 para trás no controle do crime e da violência. Nas últimas décadas, boas ideias e iniciativas de preparo e controle da ação policial, da prestação de serviços de segurança pública de qualidade para a população, em especial nos espaços populares, têm sido sistematicamente sabotadas de dentro da máquina estatal. Os programas de reforma das polícias e de prevenção social e situacional das violências que começaram a ser implantados aqui, desde 1999, foram sendo abandonados ou desativados, porque davam prejuízo à economia criminosa que alimenta o Caixa 2 de campanhas eleitorais. Faz tempo que certas carreiras eleitorais servem como lavanderias do dinheiro criminoso extorquido da população, principalmente dos territórios populares. A insegurança pública tornou-se um projeto político altamente lucrativo que tem dado certo para os senhores da guerra que promovem a cortina de fumaça do “tiro, porrada e bomba”, para os mercadores da proteção que exploram ilegalmente os serviços essenciais nas periferias e para os profetas do caos que controlam os votos pregando o terror e promovendo ameaças nas periferias. A falsa guerra contra as drogas que já dura 35 anos, sem vitória ou derrota, é um marketing político do terror que aparelha o medo legítimo que sentimos e ilude a população de que é necessário passar um cheque em branco cada vez maior para a polícia atuar, porque o crime estaria sempre na frente e cada vez mais forte. Os tiroteios se tornam o principal meio publicitário para disseminar na população a visão de que, no Rio de Janeiro, é preciso rasgar a lei, violar os direitos para fazer valer a lei rasgada e os direitos violados. Afinal, nenhum de nós é a favor do crime. Na verdade, a falsa guerra contra o crime cria os grupos armados que dizem combater. Faz-se a guerra para subir o preço dos alvarás de funcionamento das bocas de fumo, faz-se a guerra para vender a paz do arrego. Aqueles que promovem a insegurança como uma forma de fazer política governam com o crime e não contra ele.
O fortalecimento das milícias trouxe que tipo de problema para o estado do Rio?
O fortalecimento das chamadas milícias do Rio teve início com o calendário dos grandes eventos e a farra bilionária de gastos com a segurança pública que este possibilitou. As milícias são, na verdade, governos autônomos ilegais que surgem quando se tem a autonomização, politicamente autorizada, do poder de polícia da sociedade e do Estado e a sua apropriação para fins particulares e pessoais. As milícias são um problema mais grave do que as facções do tráfico, porque para existirem e exercerem o seu domínio armado, com fins lucrativos, elas precisam contar com a vista grossa dos poderes públicos e as costas quentes de setores políticos. As milícias saem de dentro do Estado e, por isso, sabotam de dentro as iniciativas de repressão qualificada ao chamado crime organizado. Elas são compostas, na sua maioria, por agentes públicos. Milicianos não estão escondidos e nem são invisíveis. Ao contrário, eles têm salvo conduto, endereço e trabalho fixos no Estado, são conhecidos, circulam entre autoridades, participam de festas VIPs, fazem a segurança de gente importante. Eles são bem relacionados, posam de cidadão de bem e são chegados aos poderes políticos para os seus negócios poderem funcionar. É isto que torna a milícia um governo criminoso mais poderoso que o tráfico. Ela está enraizada dentro dos poderes públicos e ramificada por distintos setores da sociedade que participam e lucram com seus negócios ilegais e projetos eleitorais. O negócio da milícia é produzir ameaças para vender proteção. É promover a guerra para vender a paz. Como um governo criminoso, ela cobra taxas sobre a oferta de bens e serviços essenciais. Quem mora em locais sob domínio armado miliciano é coagido a pagar o mesmo imposto várias vezes: paga para o Estado, paga para o governo miliciano. Para o seu negócio funcionar, tem que aumentar o sentimento de medo e a insegurança da população produzindo tiroteios, falsas operações, crimes violentos. Milícia não sobrevive sem braço político de apoio, favores, vantagens, privilégios e carteiradas. Por isso, ela é financiadora de campanhas eleitorais. As carreiras políticas servem como um ótimo investimento criminoso para o fortalecimento e expansão milicianos. A milícia é a "Polícia dos bens" que tem acuado e tirado das ruas a "Polícia do bem", deixando os moradores reféns do Estado duas vezes: da polícia miliciana e a polícia do tiro, porrada e bomba que não é capaz de policiar e controlar territórios e população e, portanto, de oferecer segurança pública.
Em algumas áreas, o tráfico e as milícias se uniram. Qual é o prejuízo disso para a sociedade?
O prejuízo é elevadíssimo e muito grave. A criação de conglomerados criminosos com a subordinação e anexação de facções sob o comando miliciano era previsível, era apenas uma questão de tempo, já que este comando possui maior capacidade política de articulação, maior mobilidade territorial e maior organização operacional que o tráfico. A busca de monopólio no controle de território e na regulação dos mercados ilegais faz parte do projeto político-econômico das milícias que são o lado “firma” de setores policiais e de segmentos políticos oportunistas e corruptos. A fusão forçada do tráfico com a milícia é uma forma de dar sobrevida a facções impedindo ataques e invasões de bandos rivais, de organizar a coleta de propina reduzindo a duplicidade das cobranças por policiais e, ainda, de racionalizar os gastos com proteção do funcionamento das bocas, seus funcionários e suas mercadorias ilegais. Os monopólios criminosos, sob a liderança miliciana, possibilita, após confrontos armados, mortes, invasões etc. para impor seu domínio, a ilusão de uma paz de cemitério. Esta paz de cemitério cria uma aparente redução dos crimes violentos pela sua ocultação e pelo silenciamento de oponentes e testemunhas. O monopólio miliciano do crime possibilita que de dentro do Estado se governe com o crime e não contra ele. Isto transforma o Estado em uma grande imobiliária que arrenda territórios populares para bandos armados. O Estado tende a se tornar uma agência reguladora do crime que terceiriza o governo dos espaços populares para grupos criminosos. São as milícias que podem aprisionar o governante em seu gabinete e o transformarem em um boneco de posto que balança os braços conforme os ventos eleitoreiros e dos ganhos dos mercados criminosos. São as milícias que têm força para chantagear o parlamento, intimidar o judiciário e silenciar a sociedade.
O que está errado na doutrina adotada pela PM que a leva a ser contestada por parte dos moradores das favelas?
Primeiro, a PMERJ necessita de uma doutrina do uso de força pública e publicada que seja, de fato, traduzida em procedimentos operacionais atualizados com consentimento da sociedade policiada, sob autorização da Alerj e validação legal do Ministério Público e da Defensoria Pública. O modelo atual adotando uso progressivo da força é falho por vários fatores técnicos, mas sobretudo porque: 1) não há, na prática policial, força concretamente proporcional e, sim, força suficiente sob comedimento normativo e tático-operacional já que o policial, por ser um profissional do uso da força, dispõe de mais autoridade e superioridade de método que o seu oponente armado ou desarmado; 2) o modelo é reativo-defensivo e se baseia nas ações e reações de um policial e de um oponente abstrato e genérico, sem histórico anterior, sem qualificação específica, etc. Isto possibilita que cada cabeça policial seja uma sentença diferente e desigual conforme as razões de classe, renda, cor, gênero, orientação sexual, origem social, endereço socioespacial, etc. Assim, este modelo tende a ocultar decisões racistas, misóginas e homofóbica nas abordagens e operações policiais que a PM não deseja em sua prestação de serviço à população; 3) o modelo não prioriza a qualidade decisória policial em situações de risco, incerteza e perigos reais e, sim, explora apenas a reação mecânica dos policiais, favorecendo os erros, as incapacidades e as incompetências na ação individual ou em grupo. 4) o modelo não dispõe de parâmetros estratégicos, táticos e logísticos de desempenho policial, porque pouco explora os cenários concretos de atuação policial. Segundo há que ter um programa de capacitação continuada e de larga escala de uso policial dos armamentos letais e menos letais com critérios de aferição das competências e capacidades individuais. A sociedade tem que saber qual é o padrão de excelência do policial por tipo de arma e modalidade de tiro defensivo adotado por cenário de atuação. Terceiro, há que atualizar, capacitar e tornar públicos os procedimentos operacionais. Quando se tem procedimentos débeis, sigilosos e concorrenciais, o resultado é a irracionalidade do emprego dos recursos policiais, a ausência de articulação entre as polícias em qualquer atendimento ou operação policial, a sucessão de carteiradas entre policiais, seus comandos e suas corporações e, por tudo isso, um processo crescente de violações, de desautorização e desaprovação por parte dos cidadãos. Enfim, tem-se o desgoverno das polícias, a ingovernabilidade sobre o que se passa nas ruas entre os próprios policiais, e entre estes e os cidadãos. As ambiguidades, imprecisões e lacunas na definição procedimental dos poderes de polícia têm produzido um preço elevado demais para ser pago pela sociedade: vitimização e letalidade policiais. Uma fatura também salgada demais para as próprias polícias que vão gradativamente perdendo sua credibilidade pública e capacidade de conduzir o seu trabalho com superioridade de método. Em termos práticos, a baixa procedimentalização, assim como a sua invisibilidade pública comprometem de forma bastante sensível a: validação do trabalho de investigação policial pela justiça; capacidade dos magistrados e demais operadores da justiça, de distinguir e julgar com objetividade e segurança o emprego do poder polícia adequado e validado legalmente, daqueles abusivos ou ilegais; elaboração pelas polícias de métodos e procedimentos de ação eficazes e adequados às exigências legais; eficiência dos instrumentos de controle interno e externo; transparência do processo de tomada de decisão policial na interação com os cidadãos; segurança e a confiança dos cidadãos em relação às atitudes dos policiais, sobretudo nas interações provocadas pela polícia; segurança dos policiais no curso de suas ações, levando-os a preferir intervenções reativas e pós-fato; eficácia do treinamento operacional dos policiais, sobretudo nos eventos de alto grau de incerteza e risco que deveriam corresponder às chamadas “operações policiais”; sedimentação pelos policiais de estratégias de autoproteção para encobrir tanto os desvios intencionais, quanto os erros não intencionais. E por fim, há que ter e divulgar publicamente os critérios técnicos de realização de operações policiais e de aferição de seu desempenho que permitam que a própria polícia, o estado e a sociedade possam avaliar o mérito técnico das ações policiais. É preciso por luz do sol nos processos que definem os fins políticos das missão, os meios logísticos empregados e os modos táticos de atuação que seguem desconhecidos pela sociedade, pelo poderes públicos. Operações policiais devem ser empregadas somente em situações de elevado risco, incerteza e perigos reais. É para atuar em cenários difíceis que existem grupos táticos policiais disciplinados e especializados. A repressão é um recurso caro e escasso que não pode ser desperdiçado com afobamentos, com cabeça quente, com a lógica da vingança pessoal. Por isso deve ser usada de forma qualificada e com foco para reverter cenários adversos minimizando a letalidade e a vitimização policiais. É possível avaliar a oportunidade e propriedade das operações policiais por critérios técnicos, por exemplo: O engajamento tático da equipe policial; eixos de aproximação ou controle visual de terreno de atuação; dinâmica de armamento no local (menos-letal e letal); relação numérica polícia/pessoas no local e ao redor; curva fadiga e estresse da equipe no tempo; dinâmica interativa no cenário operacional; fator surpresa e acaso. Se a polícia não controla estes fatores, ela aumenta a margem de erro. Ela deve, portanto, abortar a operação e refazer o planejamento. A vida de cidadãos e dos cidadãos policiais importam. É para produzir segurança e controle do crime, e não aumentar o medo e a insegurança da população. Veja que o crescimento do número de mortos em confronto com a polícia, neste período de redução da economia criminosa por conta da Pandemia, indica que as polícias não estão seguindo à risca os critérios profissionais de uso repressivo da força exigidos pelo Supremo Tribunal Federal e que seguem a doutrina da Associação Internacional de Chefes de Polícia adotada por todas as polícias. É importante saber que a maioria das operações policiais no Rio não são emergenciais, não são feitas para atender uma urgência inadiável da população. A maior parte destas operações policiais são programadas com antecedência e feitas para atender a demanda da própria polícia. Por isso, deveriam produzir resultados melhores com menor risco para a população e menos mortes. Se as polícias aplicarem os protocolos de operações policiais que elas mesmas criaram em 2018 por cobrança da sociedade, da defensoria pública e do MP, certamente teríamos uma repressão qualificada, com foco e com redução drástica da morte de policiais, de civis e de criminosos. Não ficaria este enxuga gelo com alto custo para sociedade.