Carina Barbosa GouvêaDivulgação

Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa “Teoria da Separação dos Poderes e Crise do Sistema Democrático Brasileiro", vinculado ao PPGD/UFPE, a professora Carina Barbosa Gouvêa é autora do livro "Populismos", lançado este ano, que escreveu junto com o cientista político Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco. Em entrevista ao Jornal O DIA, Carina explica o termo e a diferença entre um político popular e um populista. "Um político popular carismático é aquele que é aclamado pelo povo ou por seus apoiadores, independente de ideologias ou defesa de certos valores e alguns pontos são fundamentais: respeitam as regras do jogo, não rejeitam o resultado das eleições, não atacam as instituições democráticas, não negam a legitimidade dos oponentes políticos e nem toleram ou encorajam a violência e, não tem a propensão de restringir liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia. Populistas, ao contrário, são líderes carismáticos que rejeitam as regras democráticas do jogo, negam a legitimidade dos oponentes políticos, toleram e encorajam a violência. Possuem a percepção de uma única clivagem política dividindo a sociedade com polarização social e política e políticas antagonistas".
O que é populismo?
Algumas palavras possuem a mesma dificuldade de interpretação, compreensão e manuseio e uma destas palavras é populismos. Ponto que merece destaque ao seu conceito: representam uma forma de erosão gradual dos valores e princípios da democracia em contextos políticos específicos. Populismos são sempre democráticos, mas nunca liberais. Representam a negação do liberal. Observando a sua polissemia, compreendemos que populismos seria mais adequado, porque se manifesta em regimes políticos tanto de esquerda como de direita e em qualquer parte do globo. Populismos têm natureza conceitual-instrumental, porque pretendem se consolidar e podem ser definidos como iliberalismo democrático com propriedades variáveis. Representam um certo tipo de ideologia, discurso, estratégia, mobilização e ação política no contexto cultural e político específico. Se decantam através de movimentos formais, como decretos, medidas provisórias, leis; e informais, que, em sua maioria, vêm de seu movimento, de forma direta ou indireta por um líder carismático que representa e conduz uma força antissistema. Repousam suas crenças em instituições morais e éticas, em um corpo político homogêneo com a finalidade de consolidar e legitimar um regime político populista sob o manto da democracia e da soberania popular. Um exemplo interessante pode ser percebido na seguinte situação: um dos pilares fundamentais dos sistemas democráticos é a participação popular. Se um decreto, por exemplo, minar a possibilidade de as pessoas participarem das decisões políticas de seu sistema, estamos em campo de populismos.
Qual a diferença de um político popular para outro chamado de populista?
Interessantíssima a pergunta. Aqui precisamos entrar em campo do jogo político e no líder carismático. Um político popular carismático é aquele que é aclamado pelo povo ou por seus apoiadores, independente de ideologias ou defesa de certos valores e alguns pontos são fundamentais: respeitam as regras do jogo, não rejeitam o resultado das eleições, não atacam as instituições democráticas, não negam a legitimidade dos oponentes políticos e nem toleram ou encorajam a violência e, não tem a propensão de restringir liberdades civis de oponentes, inclusive da mídia. Populistas, ao contrário, são líderes carismáticos que rejeitam as regras democráticas do jogo, negam a legitimidade dos oponentes políticos, toleram e encorajam a violência. Possuem a percepção de uma única clivagem política dividindo a sociedade com polarização social e política e políticas antagonistas. Seus apelos são, em sua maioria, pelo sentimento anti-imigrante, polarização extremista e violenta partidária, campanhas políticas vocacionadas à limpeza étnica com promoção de identidade excludente. Dentre as propriedades variáveis de populismos, potencializa-se, neste campo, a rotinização do carisma, em que a devoção afetiva ultrapassa a figura do sujeito carismático e se louva em suas capacidades extraordinárias de realização de bem comum através de políticas clientelistas e segregacionistas capazes de promover, no seio da massa, a devoção às suas práticas transformativas.
O seu último livro, "Populismos", em co-autoria com Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco cita bastante as democracias liberais. A que conclusões vocês chegaram? Quais os desafios hoje para o fortalecimento de sociedades livres e plurais?
Em nosso livro “Populismos”, procuramos conceituar populismos, estabelecer suas propriedades variáveis e apresentar uma metodologia analítica para que se possa mapear populismos em contextos políticos democráticos específicos. Populismos é um fenômeno multifacetado que vem colocando em risco democracias liberais nos diversos continentes. A permanência das dificuldades estruturais apresentadas pelas democracias liberais num contexto de crescente desigualdade favorece a sua ascensão. Populismos formam um leque semântico do qual não é possível haurir uma aptidão concernente a um comportamento alicerçado no “agir, resistir, cooperar, assentir, escolher”. Pelo contrário, a gramática comportamental populista revela “controle, domínio, cooptação, sedução, ressentimento e imposição”. O núcleo central da análise se vinculou ao modo pelo qual populistas mobilizam a noção de povo para, em nome de uma pretensa “vontade geral”, aumentar a lealdade de seus seguidores com o intuito de legitimar políticas segregacionistas, arbitrárias e autoritárias, como se espelhassem o desejo da população. A resiliência democrática está intrinsecamente ligada aos efeitos de reações exercidos pelos corpos intermediários, pelas instituições formais e informais, que existem para proteger os direitos das minorias, dos vulneráveis, das liberdades e para contribuir para a resolução dos conflitos políticos de forma plural. As estruturas políticas e sociais devem se fortalecer e aprimorar para estabelecer processos de mudança, integração e cooperação entre as instituições e poderes constituídos, o que diminuirá, necessariamente, os efeitos negativos dos movimentos e ampliará os espaços de vocalizações políticas públicas. Os líderes políticos devem promover e fortalecer a proteção dos direitos humanos e fundamentais por meio de suas palavras e ações. Devem demonstrar respeito pelas normas básicas e pelas instituições; governança responsável, participativa, transparente e partidos políticos; apoio à sociedade civil e aos movimentos populares; imposição de sanções a atos e abusos de direitos humanos e fundamentais. A democracia e seus diversos sistemas permanecem responsivos às mudanças ocorridas no contexto geopolítico e que demarcam o entrincheiramento de poder e liberdades – e este é o alerta que a pesquisa pretendeu despertar.
As práticas populistas adotadas pela elite política brasileira são diferentes das encontradas em outros países?
As práticas populistas adotadas pela elite política brasileira são similares às encontradas em outras realidades políticas no globo. Veja que todas as formas de governo são tipos ideais e só se pode constatá-los por aproximação, por variáveis. O populismo, para além de sua definição, possui propriedades variáveis comuns às governanças populistas que foram extraídas da vasta literatura que gira no entorno do populismo e não constituem um rol terminativo. Por exemplo, da intimidação à imprensa livre; da rejeição dos resultados das eleições; do enfraquecimento e ataques às salvaguardas institucionais; da utilização maciça dos serviços de inteligência e de controle de dados e vigilância; da rotinização do carisma; formulação de políticas orientadas por impulsos e sujeitas a mudanças repentinas e reviravoltas, porque é projetada para responder ao clima político do momento; do comportamento antidemocrático; do uso retórico de políticas e ações governamentais; da exploração do sentimento popular de descrédito nas instituições; da pauta e agenda política segregacionista; do uso sistemático do ambiente midiático em plataformas sociais como WhatsApp, Twitter, Facebook; do uso e impulsionamento desenfreado de desinformações e fake news; da subversão do processo constitucional e da rejeição das regras do jogo; da tolerância ou encorajamento à violência; da propensão à restrição das liberdades e da cultura; do uso do moralismo político e religioso; da política mítica; do órgão de fiscalização politizado; do uso do poder militar na política e da “militarização da política”, dentre outros comportamentos que se enquadrem nos princípios antidemocráticos e iliberais. Estas variáveis se decantam através dos movimentos formais e informais de forma direta ou indireta no campo do iliberalismo democrático.
Jair Bolsonaro, no Brasil, Donald Trump, nos Estados Unidos, e o ex-presidente Lula são populistas? O que os diferencia, na prática?
A vasta literatura sobre estudos de populismo afirma quase que de forma uníssona que Jair Bolsonaro e Donald Trump são líderes populistas e o que os diferencia na prática são o uso das propriedades variáveis de populismos. Para Steven Levittsky e Ziblat, Trump e Bolsonaro possuem um comportamento débil com as regras do jogo democrático. Trump caiu nesses parâmetros quando questionou a legitimidade do processo eleitoral e deixou no ar a sugestão sem precedentes de que poderia não aceitar o resultado das eleições de 2020. Negou a legitimidade dos oponentes políticos os descrevendo como subversivos, impatrióticos ou como ameaça à segurança nacional ou ao modo de vida existente. Trump ainda foi intolerante e encorajou a violência, por exemplo, quando abraçou apoiadores que agrediram fisicamente pessoas que protestavam contra eles. E, por fim, a tendência de restringir liberdades civis de rivais e críticos. Costumam usar seu poder para punir aqueles que na oposição, na mídia ou na sociedade civil venham a criticá-los. No Brasil, este teste foi aplicado também a Bolsonaro que pontuou nos quatro indicadores e em outras propriedades variáveis específicas. Bolsonaro rejeitou por diversas vezes as regras do jogo democrático, tolerou e encorajou a violência em discursos políticos, negou a legitimidade dos rivais políticos e deu indicações de disposição para restringir liberdades civis de seus oponentes. No movimento populista de Bolsonaro, destaca-se o uso do moralismo político e religioso, do impulsionamento desenfreado de desinformações e fake news, da polarização da política e da militarização da política. Embora Bolsonaro mantenha o conjunto de instituições formais democráticas, ele subverte o sistema de freios e contrapesos a partir de seus movimentos. Consta-se que, desde que assumiu o cargo em janeiro de 2019, abriu uma luta diária contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mostrando uma clara resistência ao lidar com o sistema de freios e contrapesos e instituições democráticas. Quanto ao Lula, as pesquisas de Tom Gerald Daly indicam que populismos no Brasil possuem variantes e já está constatado que ele pode ser tanto de esquerda quanto de direita. Particularmente, minhas pesquisas não mapearam os movimentos formais e informais de Lula para aplicar as métricas de populismos e afirmar que ele é populista.
A democracia brasileira está forte o suficiente para ampliar a participação popular?
Se o populismo afronta a democracia, é preciso revisitar e repensar os desenhos institucionais para responder ao populismo do ponto de vista estrutural. Para resistir ao populismo, o direito público deve levar em conta a falta de capacidade de respostas e responsabilidade dos sistemas representativos e apostar em sistemas fortes de mecanismos participativos para dificultar a incorporação dos movimentos populistas e nossa democracia é forte para ampliar a participação popular. Assim, discutir os papéis dos sistemas participativos e as interfaces entre representantes políticos e o povo deve ser tarefa alocada como elemento de especial importância no contexto do movimento populista. Por exemplo, a democracia deliberativa incentiva e facilita o exercício da contestação que enfatiza a pluralidade de vozes. A participação e inclusão das pessoas no processo de decisão tem o potencial de minar a credibilidade das reivindicações dos populistas em falar em nome de todo o povo. Há um exemplo interessante em campo. Cita-se a recente integração, via emenda constitucional, de minipúblicos deliberativos da Irlanda. Minipúblicos deliberativos constituem uma poderosa ferramenta democrática com potencial indicador para aumentar a participação popular heterogênea em contextos polarizados. Podem encorajar novas reflexões e tomadas de decisões plurais que serão fruto de uma visão igualitária da comunidade política e, que contrasta frontalmente com a visão hierárquica e homogênea de tomadas de decisões políticas que são transmitidas pelos quadros políticos autoritários ou populistas. Tem a capacidade de empoderar indivíduos e grupos minoritários, podendo surgir uma nova tessitura política com capacidade de avaliação da qualidade das decisões produzidas pelo líder autoritário e pelos minipúblicos deliberativos. A pesquisa realizada por Doyle e Walsh conclui que o experimento de minipúblicos deliberativos pode ter fortalecido a cultura constitucional da Irlanda reforçando as características antipopulistas.
As instituições brasileiras são sólidas o suficiente para rechaçar rupturas autoritárias?
Sim, eu realmente acredito no sistema democrático brasileiro. Os efeitos positivos de contenção do movimento populista no Brasil podem ser percebidos, por exemplo, por meio dos efeitos de reação exercidos pelos poderes legislativo e judiciário, sociedade civil, organizações não governamentais e movimentos sociais. Os sistemas de freios e contrapesos são capazes de restringir e constranger os movimentos populistas. O efeito de reação, advindos tanto pelas instituições formais como informais, às ações governamentais compõe o cenário atual no Brasil, representando o exercício ativo e em ebulição da democracia brasileira, que tem atuado de forma a impedir que a legitimação do movimento populista. O momento atual exige união do país e atuação coordenada, integrada e solidária de todos os atores envolvidos – “o empenho em conter a disseminação acelerada do vírus global não pode admitir fraquezas dentro ou fora do Estado, representadas pelas desavenças políticas e discursos populistas”. As estruturas políticas e sociais devem se fortalecer e aprimorar para estabelecer processos de mudança, integração e cooperação entre as instituições e poderes constituídos, o que diminuirá, necessariamente, os efeitos negativos dos movimentos e ampliará os espaços de vocalizações de políticas públicas. Os líderes políticos devem promover e fortalecer a proteção dos direitos humanos e fundamentais por meio de suas palavras e ações. Devem demonstrar respeito pelas normas básicas e pelas instituições; governança responsável, participativa, transparente e partidos políticos; apoio à sociedade civil e aos movimentos populares; imposição de sanções a atos e abusos de direitos humanos e fundamentais. A democracia e seus diversos sistemas permanecem responsivos às mudanças ocorridas no contexto geopolítico e que demarcam o entrincheiramento de poder e liberdades – e este é o alerta que a pesquisa pretendeu despertar. Precisamos forjar mecanismos para que as respostas políticas e jurídicas possam avançar e defender os direitos democráticos. Precisamos, também, direcionar o centro das atenções teóricas que são influenciadas diretamente por esses movimentos e atores iliberais democráticos.
Nas crises, o populismo cresce?
Em quase todo o mundo, a desconfiança nas instituições políticas deslegitima a sua representação, deixando-nos órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum. A ruptura da relação entre governantes e governados torna este conflito ainda mais profundo, tendo consequências devastadoras a partir da incapacidade de lidar com as múltiplas crises que estão a ser decantadas e mapeadas no sistema político interno: crise da democracia liberal; crise econômica; crise de legitimidade das instituições; crise do sistema representativo e da classe política; crise social; crise do consenso liberal. Os efeitos decorrentes da desconfiança nos órgãos assim considerados democráticos – executivo, legislativo e judiciário – acabam por deslegitimar a representação política, que não está necessariamente definida em opções políticas específicas, como esquerda ou direita. Em situação de crise econômica, social, institucional, moral, aquilo que era um modelo de representação desmorona na subjetividade das pessoas. Só resta o entendimento de que as coisas são assim e aqueles que não as aceitarem que saiam às ruas, onde a polícia os espera. É o que está acontecendo em muitos países do Ocidente e Oriente. Mais de dois terços dos habitantes acham que os políticos não os representam, que os partidos, todos eles, priorizam os próprios interesses, que os parlamentos não são representativos e que os governos são corruptos, injustos, burocráticos e opressivos. E desse desencanto nascem comportamentos sociais e políticos antiliberais que estão transformando as instituições e práticas de governança democrática em toda parte e são definidos como populismo. Essas crises institucionais que surgiram na última década acabaram por forjar dois movimentos distintos: as revoluções populares e a consolidação de regimes autoritários e de regimes iliberais democráticos, ou seja, populistas. Nossa investigação dos populismos fez uma incursão nas diferentes realidades políticas. As sugestões apresentadas na obra são diversas e nos resta afirmar, ainda, que todas essas dimensões dos problemas ostentam limitações, abrindo caminho para estimular novas reflexões a respeito de populismos.