Cantora UriasJoão Arraes

Rio - Sucesso nas passarelas de moda e nas plataformas de música, a mineira Urias quer mostrar que uma mulher trans e negra pode ocupar diversos espaços. Aos 27, ela lançou recentemente seu primeiro disco, "Fúria", que canaliza o sentimento da raiva e transforma em letras e melodias intensas. Produzido por Rodrigo Gorky, Maffalda e Zebu, o álbum traz músicas autorais, sonoridade do R&B e hip hop, além de identidade visual desenhada pela própria artista.
"Decidi falar de sentimentos, da raiva mesmo, porque estava passando raiva com coisas que estavam fora do meu alcance de resolver, sabe? Então, decidi falar de todo o sentimento que desencadeia essa raiva, seja de tristeza, de tesão... Quando comecei a escrever as músicas, pensei em como fazer a raiva render e ser produtiva para mim", diz.
A realidade do país, que mais mata pessoas trans no mundo e vive uma crise democrática, também serviu de inspiração no processo criativo do CD. "Ainda mais no Brasil. Nossa Senhora. Se estivesse tudo bem, ganhando em dólar, em euro, se desse para comprar as coisas, o gás, estaria bom até", completa ela, que fala ainda sobre narrar as próprias vivências no projeto.
"Não tem como falar de outra coisa, é a minha existência, eu não vivo outra coisa. Não sou só uma pessoa trans, mas isso faz parte do grande conjunto que eu sou... A maioria das coisas que eu passo, das raivas que eu passo, é por causa do meu recorte. Não tinha como deixar isso de lado, ainda mais no país em que a gente vive e com tudo o que tem rolado há muito tempo com a minha comunidade", reflete.
Desabafo
Urias fala sobre paixão ardente em "Explícito", vulnerabilidade em "Tanto Faz" e outros temas, mas o interlúdio na metade do disco chama atenção. A faixa traz um áudio de WhatsApp enviado pela cantora para uma amiga que dizia não conseguir reconhecimento profissional no Brasil.
"Falei para ela que a gente não pode esperar que as pessoas vão levar em conta os nossos recortes. Quem não se encaixa nas minorias, sempre vai ser privilegiado. Tem um monte de artista fazendo qualquer coisa e está estourando, entendeu? A raiva me pegava muito nesse lugar... A culpa não é minha, nem dos artistas que estão fazendo sucesso. A culpa é de todo um sistema. A roda não gira ao nosso favor", reflete.
Não é à toa que ela escolheu nomes como Vírus, Hodari e Ebony para fazer duetos. Ela queria cantar com pessoas que tivessem vivências atravessadas pela mesma raiva. "São artistas que representam o futuro, não no sentido de estourar, mas no sentido de artistas que vão entrar para a história", pensa.
Visibilidade Trans
No Mês da Visibilidade Trans, Urias ainda reflete sobre o significado da data que foi celebrada neste sábado. Ela reforça que a luta da comunidade trans não pode ser lembrada apenas nesse mês, mas, sim, o ano inteiro, além de deixar o recado de que esse é um debate de toda a sociedade.
"Não sou eu que tenho que falar disso, são as pessoas cisgêneras, sabe? Não é um dever nosso. Mas não posso tirar a importância de destacarem a nossa existência durante essa data. É muito bom comemorar a minha existência. Isso não acontece muito socialmente. Mas tenho minhas ressalvas também. Fico com medo porque a gente não tem estrutura de segurança. Então, nos colocar em evidência, é nos colocar em lugar de alvo também. São muitos sentimentos sobre essa data. Fico horas pensando", reflete.
"BBB 22"
Urias comenta também a participação de Linn da Quebrada no "BBB 22" e a insistência de alguns participantes em chamar a artista, que se identifica como travesti, equivocadamente por pronomes masculinos. "Não é difícil respeitar, mas sinto que as pessoas não entendem como a gente consegue ir contra todo o mar só para simplesmente ser a gente, isso não se encaixa na cabeça cisgênera das pessoas porque elas não tem que lutar para ser", diz.
"Quando alguém olha para a Linn, para a cara dela, para os peitos dela e decide chamá-la pelo pronome errado, é uma decisão. É simplesmente uma demonstração de poder. Para mim, não é sem querer. Algumas violências não são sem querer. A cisgeneridade e a branquitude tem o privilegio de se fazer de burro para fugir das coisas. Não é erro, não é dificuldade, é decisão, é escolha", reforça.