Enredo do Paraíso do Tuiuti vai usar tom sarcástico e popular para descrever realidade de mulheres trans e travestis Renan Areias/Agência O Dia

Rio - Apostando em um tom sarcástico e popular, o Paraíso do Tuiuti vai desfilar a realidade de mulheres trans através dos séculos na Sapucaí. Com o enredo "Quem tem medo de Xica Manicongo?", a escola conta a história da primeira travesti não indígena documentada do Brasil e como sua trancestralidade segue guiando e protegendo esse grupo. A agremiação é a segunda a passar pela Avenida, na terça (4), pretendendo mostrar um manifesto por respeito e aceitação.


Xica Manicongo era uma sacerdotisa renomada da quimbanda na África, quando foi escravizada e levada para a Bahia, onde passou a ser tratada como homem e batizada como Francisco Manicongo pelos colonizadores, que não aceitavam sua sexualidade. Ao fugir para as matas, descobriu junto aos Tupinambás os Tibiras - nome dado aos homossexuais pelos indígenas - e a magia do catimbó, que ajudou a libertar sua força feminina, tornando-a mais poderosa.

Capturada pela Santa Inquisição, aceitou voltar a se vestir e agir como homem para não ser morta na fogueira — de dia, era Francisco, à noite Xica. Quando desencarnou, foi acolhida espiritualmente pela égregora das Pombas-Giras e passou a proteger as travestis e mulheres transsexuais nas ruas, soprando um dialeto inspirado na língua Iorubá que era entendido somente por elas: o Pajubá. A linguagem segue viva é utilizada principalmente pela comunidade LGBTQIAPN+.
"A gente vê que o Pajubá parou até no Enem, falamos muitas expressões hoje no nosso cotidiano", disse o carnavalesco Jack Vasconcelos, que completou oito anos na agremiação e ressaltou enredo como o que mais gostou de fazer.
A escolha do projeto, conforme Vasconcelos, considerou a importância do tema para o debate social, já que o país segue pelo 17º ano consecutivo como o que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Com a promessa de fantasias impactantes, a Amarela e Azul de São Cristóvão retratará em uma delas o Brasil como "campeão do horror". A passagem do Tuiuti aproveitará a iluminação cênica do Sambódromo e elementos como a fumaça, símbolo da comunicação entre plano terreno e espiritual, já que Xica virou entidade e está em todos os lugares ao mesmo tempo.

A aderecista Aryadna Andrade, de 29 anos, conta que o carnavalesco optou por mais criatividade e uso de poucos elementos pré-produzidos. "Fizemos um trabalho bastante manual esse ano, o Jack optou por um trabalho bem mais criativo, nada muito pronto, então criamos bastante. Como ele diz, nosso Carnaval está com uma 'pegada' bem antiga. Então, muitas das peças não vieram prontas, fizemos tudo, bem manual", relatou.

Apesar do tema sério e da proposta por reflexão, Jack pontua que há formas de passar uma mensagem ao público de forma clara sem precisar ser tão literal e, para isso, vai explorar a ironia e o duplo sentido, comuns na expressão dos brasileiros.
"Eu não preciso fazer um carro alegórico com várias pessoas trans sendo agredidas para passar uma mensagem, não preciso ser tão literal (…) Eu prezo muito pela comunicação, não me importa uma coisa que as pessoas não entendam, ou se só uma camada vai entender, só uma elite cultural. Eu falo para todo mundo, todo mundo tem que entender".

Tuiuti quer provocar 'momento de catarse' em desfile

O Paraíso do Tuiuti terá cinco carros alegóricos, três tripés e 28 alas. Jack considera a última alegoria como a mais importante da escola, porque contará com a presença de 29 personalidades, entre elas as deputadas federais Érika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) e estadual Dani Balbi (PCB-RJ), bem como Bruna Benevides - primeira travesti a se assumir na ativa da Marinha do Brasil e presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). 

"O enredo se encerra com essa Xica que virou essa entidade, que virou esse exemplo transcestral, e continua protegendo e guiando, principalmente, o trabalho das mulheres trans e travestis que estão na frente lutando pelos direitos da comunidade. Temos as parlamentares, professoras, médicas, atrizes, cantoras...essa galera que consegue usar seu espaço para falar e para servir de exemplo, também, para as outras. A Xica está nisso aí, está em tudo".

Além de desfilarem como autoridades na luta pela visibilidade trans, elas também homenagearão Eloina dos Leopardos, primeira rainha de bateria da história, que estará no carro alegórico. No chão, passistas transsexuais que participaram do projeto "Transcidadania no Samba" — parceria do Tuiuti com a Antra — também vão celebrar a artista que inaugurou o posto, em 1976.
"Mostrar essas mulheres que furaram as estatísticas de que a maioria não passa dos 35 anos, em média, que essas mulheres conseguiram e estão bem, felizes, cantando o samba-enredo com saúde, é um manifesto", destacou o carnavalesco.

Outra alegoria que descreverá o dia a dia desse grupo será uma representação visual do Pajubá. O carro contará com letreiros de vários estabelecimentos mas, ao invés de receberem nomes como "salão de beleza", "motel" e "bar", terão a nomenclatura usada por mulheres trans e travestis. "O carro brinca com palavreado e as pessoas vão ver na prática, acho que as pessoas vão rir". O carnavalesco ressaltou ainda que o Tuiuti vai mostrar como a luta contra o preconceito permanece desde Xica até os dias atuais.

"Essas passagens de tempo são muito naturais, porque você acaba percebendo que essa narrativa é contínua e não terminou. Quando você passar, por exemplo, de um setor que está no século XVI, com ela sendo julgada, e passa por um carro alegórico que fala das travestis nas ruas trabalhando, falando o Pajubá e as entidades as protegendo, você faz uma correlação natural de que há necessidade de proteção. A marginalidade que essas mulheres foram obrigadas a se colocarem é histórica e continua". 
Jack salienta que o enredo foi desenvolvido para causar catarse no público "Vamos proporcionar ao público um momento de catarse, de falar 'caramba, ainda é assim!'. Embora não seja uma coisa escondida, muita gente não se 'tocou' de que a história não mudou. Se você passa de uma época colonial e segue até hoje com a mesma narrativa, tem alguma coisa muito errada. Essa é uma das grandes lições do enredo".

Carnaval de inclusão

Para Vasconcelos, o enredo desvela uma ancestralidade e história dais quais o grupo pode e deve se orgulhar, proporcionando proximidade e inclusão de pessoas trans e travestis. Ele destacou a presença de mulheres trans em todos os setores da escola, especialmente a comissão de frente, composta por bailarinas transsexuais

"O mote de tudo é mostrar a transcestralidade da Xica Manicongo, é mostrar para as travestis e trans que elas têm uma ancestralidade, uma história própria e muito antiga, que acompanha a história da humanidade, e isso é motivo de orgulho. O mais importante é a gente promover a proximidade, vamos trazer as travestis e mulheres trans para a nossa vida. Quantas você conhece? Alguma é sua amiga? Quantas frequentam sua casa? Você frequenta a casa de alguma? Algum te atende quando você vai ao médico? Vamos deixar de ter medo, vamos nos aproximar". 

Além das que desfilarão no Sambódromo, há presença delas também nos barracões. Como parte do projeto Transcidadania do Samba, todos os sábados desde outubro de 2024, mulheres trans fizeram oficinas de formação em adereços e fantasias para se tornarem profissionais do Carnaval.
Em janeiro deste ano, as participantes começaram a estagiar nos ateliês da escola, na construção dos figurinos. Para Aryadna, uma das instrutoras, a iniciativa é uma forma dar oportunidade a mulheres que, em muitos casos, sofrem com a marginalização.

"É mais uma coisa que está acontecendo dentro do enredo: poder ensinar para mulheres trans tudo que eu aprendi no Carnaval. Agora, elas vêm para o estágio e vou fazendo um rodízio, passando em cada bancada e elas seguem aprendendo todo tipo de trabalho. É uma forma de abrir portas, inclusive algumas do projeto já foram efetivadas (na agremiação). O Carnaval muda vidas, o povo acha que se resume em quatro dias e é só o desfile, não sabem todo o trabalho, de todos os meses que estamos aqui", disse a aderecista.

Aryadna também contou ter se emocionado ao conhecer o enredo e, pela primeira vez em quatro anos na agremiação, cruzará a Passarela do Samba. "Quando a escola publicou o enredo, eu mandei mensagem para o Jack e ele só respondeu assim: 'esteja preparada'. Eu disse: 'estou mais do que pronta' e está sendo uma experiência maravilhosa para mim, como mulher trans, e de ensinamento, porque eu conhecia pouco da história da Xica e hoje sei do início ao fim. É uma história importante para a sociedade inteira".