Andréa BeltrãoNana Moraes / Divulgação

Rio - Andrea Beltrão, 61 anos, coleciona uma bela trajetória no teatro, TV e cinema. Com três indicações ao Prêmio Shell: melhor atriz, direção e dramaturgia, ela está em cartaz no Teatro Poeira, na Zona Sul, até o dia 27 de abril, com o monólogo "Lady Tempestade". O espetáculo mergulha na leitura dos diários da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003) e reflete sobre violências e injustiças no presente e no futuro, através dos relatos sobre sua atuação em defesa de centenas de presos políticos do Nordeste, principalmente entre 1973 e 74, um dos períodos mais pesados da ditadura brasileira.
"O que mais me impressiona na história de Mércia é a dedicação absoluta aos presos e às famílias dos presos. Mércia cuidava das mães, dos pais e dos filhos dos presos. Recebia todos em sua casa, a qualquer hora do dia ou da noite. Abrigava a todos. A casa dela estava sempre cheia de gente pedindo ajuda. E ela nunca se negava a ajudar", conta Beltrão.
A advogada, segundo a atriz, dava leite quente, colocava para dormir e conversava até de madrugada com essas pessoas. "A vida dela era cuidar da vida dos seus clientes. Por ser mãe, ela se solidarizava completamente com o desespero das mães, que encontravam nela um porto seguro", explica.

Na trama escrita por Silvia Gomez e dirigida por Yara de Novaes, Andrea interpreta A., mulher que recebe os diários de Mércia, fica impactada com o testemunho pela busca de justiça — ou, ao menos, o paradeiro de desaparecidos, a partir das súplicas de mães desesperadas — e com a narrativa repleta de violência e coragem.
A artista comenta que queria muito trabalhar com Yara e, quando ela a procurou, as duas ainda não tinham ideia do que fariam juntas. A diretora e atriz, entretanto, estava fazendo um filme sobre o caso de José Carlos Machado, um jovem líder estudantil de Minas Gerais, que foi preso, assassinado e sepultado com identidade desconhecida. Mércia foi a advogada que conseguiu a exumação do corpo de José e o devolveu para a família. Ela só não foi assassinada também porque a notícia do desaparecimento do jovem, naquela altura, já havia tido repercussão internacional.
"Foi assim que fiquei sabendo sobre Mércia, através de Yara, e também do livro que Samarone Lima escreveu sobre José Carlos e ele falava sobre Mércia. Fomos atrás da história dela e Roberto Monte, que é coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte, nos entregou o diário de Mércia. Foi a partir daí que começamos a trabalhar na peça. A autora Sílvia Gomez escreveu o texto do espetáculo através dos relatos pessoais de Mércia. Essa foi a história que decidimos contar", conta.
A advogada dizia que era uma contadora de histórias de pessoas que reconstruíram a liberdade. Beltrão acredita que divulgar vivências é uma maneira amorosa de pensarmos juntos no nosso passado, presente e futuro. "Sou uma pessimista esperançosa. Sempre torço pelo final feliz, mas nem sempre ele acontece - ou quase nunca. A gente não cai no realismo, a realidade é que desaba sobre a nossa cabeça, minuto a minuto. E é assim. Também não acredito que o teatro possa ser um aprendizado. O teatro não se presta a propagar mensagens, apenas. Teatro, para ser teatro, tem que ser bom. Tem que ter beleza. Tem que ter afeto e provocação", opina.
Beltrão afirma que o tablado quando é bom abala as nossas certezas e afeta o nosso pensamento. "Para isso é preciso uma boa história como a de Mércia, por exemplo, e que a peça seja boa. As mudanças se operam dentro do espectador, que quando é tocado, deixa de ser passivo e recebe aquela história, e faz o que ele acha que deve ser feito".
'Muitas pessoas foram apagadas'
Mércia foi a maior advogada nordestina de presos políticos durante a ditadura militar e mesmo assim tem a memória pouco valorizada. "Muitas pessoas foram apagadas pela maneira como se 'decidiu' contar esse momento da história brasileira", reflete Andrea.
"Assisti ao documentário que a jornalista e escritora Miriam Leitão fez sobre o desaparecimento de Rubens Paiva. Nesse documentário, Miriam pergunta a um militar de alta patente se ele não sabia que Dilma Roussef, ex-presidente do Brasil, havia sido torturada. Ele devolve a pergunta a Miriam- 'você acha que ela foi torturada?'. Miriam responde-'eu acredito nela.' E o militar diz- 'eu não sei'", lembra.
Parceria com Fernanda Torres e torcida pelo Oscar
Quando Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz e foi indicada ao Oscar, não faltaram memes nas redes sociais de Fátima e Sueli, personagens que as duas interpretaram na série de comédia "Tapas & Beijos", exibida na Globo entre 2011 e 2015. Em um momento tão icônico para a brasileira com o premiado filme "Ainda Estou Aqui", Andrea demonstra torcida e orgulho da amiga, ainda mais por se tratar de um filme que narra a história de Eunice e Rubens Paiva.
"Fernanda merece todos os prêmios. É uma atriz extraordinária. É uma mulher fora de série. Foi muito bonito ver o país orgulhoso e feliz por causa de uma atriz. Nós já tínhamos experimentado essa alegria com Fernanda Montenegro, quando ela foi indicada ao Oscar. O prêmio de Fernanda é importante, em primeiríssimo lugar, pela conquista pessoal dela e de seus parceiros de trabalho", diz.
"Ainda Estou Aqui" levou mais de três milhões de espectadores ao cinema até o momento. "Devolve o público ao cinema, o prazer da sala escura sem interrupções. É um feito para ser aplaudido de pé. Como disse a mãe dela: 'Fernanda Torres, bravo!'", completa a artista. 
Parceria com Marieta Severo
E já que o assunto é amizade e talento, a atriz também fala sobre a longa parceria com Marieta Severa, sua amiga e sócia do Teatro Poeira. Juntas, elas atuaram nas peças "As Centenárias" (2007 a 2011), "A Estrela do Lar" (1989), "A Dona da História" (1998) e "Sonata de Outono" (2005). Na TV, fizeram "A Grande Família" (2011). "Com Marieta Severo existe sempre uma vontade de tudo e um pouco mais. Administrar e financiar os Teatros Poeira-Poeirinha dá um trabalho imenso e adoramos isso. Temos uma equipe espetacular que nos ajuda. Acho que em breve faremos alguma coisa juntas. Esse é o meu desejo. Estamos grudadas há mais de 30 anos. Que venham mais 30", vibra. 
Premiada na TV
Beltrão interpretou Zefa Leonel, a matriarca da família Leonel Limoeiro, na novela "No Rancho Fundo", exibida pela TV Globo, entre abril e novembro de 2024. Com o papel, ela ganhou o prêmio de Melhor Atriz de Novela no "Melhores do Ano", da TV Globo, e também foi a vencedora, na mesma categoria, do Prêmioda Associação Paulista de Críticos de Artes ( APCA). 
"A novela No Rancho Fundo foi uma alegria que pintou na minha vida. Sinto saudades de Zefa Leonel, de tudo que ela fazia, dizia, da sua maneira de pensar. Mércia e Zefa Leonel, caso se conhecessem, seriam grandes amigas e trabalhariam juntas, lutando contra os “gafanhotos, necrófilos, sádicos e canalhas”. Ainda não tenho nenhum projeto para a TV, mas estou trabalhando nas histórias que gostaria de contar", conclui.
Serviço
"Lady Tempestade"
De quinta a sábado, às 20h | Domingo, às 19h
Local: Teatro Poeira
Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo
Ingresso: 120,00 (inteira) | 60,00 (meia)