Criado há 50 anos para receber famílias removidas de favelas, conjunto sofre com violência e abandono
Por tamyres.matos
Rio - Quem passa pela rua e vê a aposentada Maria das Dores Arruda, de 71 anos, na varanda de seu sobrado, na Vila Kennedy, não consegue imaginar tudo o que aconteceu nas últimas cinco décadas. Logo que chegou ao Rio, em 1961, a mineira pedia aos céus para deixar o barraco onde morava com o marido e dois filhos na Favela do Esqueleto, no terreno onde foi construída a Uerj, no Maracanã.
Por sorte ou não, foi no programa ‘Aliança para o Progresso’, do presidente americano John Kennedy, que ela acabou tendo seu desejo realizado. ‘Dona Fia’, como é conhecida, e sua família estão entre as cerca de 31 mil pessoas que o governo Carlos Lacerda removeu de favelas do Rio nos anos de 1960, com recursos do programa.
Inaugurada em 20 de janeiro de 1964, as famílias das comunidades do Esqueleto e do Morro do Pasmado, em Botafogo, compraram 5.054 casas do conjunto habitacional anunciado como modelo. Passados 50 anos, a experiência deixa lições às remoções que ocorrem atualmente com as obras da Copa e das Olimpíadas.
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Na promessa de uma casa em um terreno de nove metros de largura por 15 de comprimento, Dona Fia viu a chance de cuidar da saúde dos filhos, que conviviam com doenças respiratórias crônicas causadas pelo ambiente insalubre da favela. “Eu não vim forçada. Pedi a Deus para sair do Esqueleto porque meus filhos eram muito doentes”, conta. Sete meses depois da inauguração, ela foi para o embrião, designação dada às unidades: sala, cozinha, banheiro e um quarto, onde mal cabia uma cama.
O problema pior, no entanto, era da porta da rua para fora, onde a imagem era bastante diferente da promessa. Na ruas, iluminação pública era quase um luxo e, quando chovia, a lama tomava conta. Em casa havia luz, mas até hoje a água é puxada por uma bomba instalada pela família.
Além disso, do dia para a noite, acostumados ao comércio intenso e serviços disponíveis nas regiões centrais da cidade, os moradores se viram sem mercado, padaria, farmácia, posto médico ou hospital e, especialmente, sem transporte até o trabalho — quase inexistente à época e insuficiente até hoje. “Nós não pegamos nada bom aqui”, diz Dona Fia.
Aos 91 anos, Rita Costa Gomes não esquece que passou o ano inteiro de 1964 chorando. Moradora do morro do Pasmado, em Botafogo, ela diz ter sido a primeira a chegar a Vila Kennedy. “Nós morávamos a poucos metros da praia e vínhamos fazer o que naquele mato?”, critica ela. O marido teve que ficar morando no trabalho, no Humaitá, porque não tinha como pagar a passagem todo dia. Agora, as duas revelam que gostam da comunidade. Só temem pela segurança.
Guerra do tráfico impõe medo na área
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Barricadas feitas com sofás e pneus, feira livre de drogas na Praça Miami e tiroteio intenso. Hoje o medo impera nas ruas de Vila Kennedy. A escalada da violência chegou ao seu auge. Moradores contam que o cenário violento atual começou a se moldar em 2005, quando um grupo ligado ao traficante Marcelo Cavalcanti, conhecido como Marcelo PQD, assumiu o tráfico da região.
Membro do Terceiro Comando, o ex-militar teria introduzido o armamento pesado e a ocupação de territórios, discreta até então. Em 2011, o Terceiro Comando e o Comando Vermelho entraram em guerra na região. O traficante Márcio José Sabino Pereira, conhecido como Matemático, morto em 2012, queria dominar o comércio de drogas local. Clique na imagem abaixo para ampliar o infográfico:
Com a pacificação do Complexo do Alemão, de Manguinhos e do Lins, traficantes dessas regiões se refugiaram na Vila Kennedy. Agora, eles promovem bailes funk todos os fins de semana nas comunidades de Vila Progresso e da Metral.
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Em 2011, o menino Marlyson Ribeiro Pereira, de 12 anos, morreu ao ser atingido por uma bala perdida quando dormia no sofá de casa. O governo chegou a dizer que faria uma UPP na região, mas não há data confirmada. A PM anunciou que criará uma Companhia Destacada para ajudar o trabalho do 14º BPM (Bangu), no local.
Cerca de 120 mil pessoas vivem no local
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O Centro Comunitário Irmãos Kennedy estima a população da região em 120 mil, o que seria metade do total de Bangu, onde fica o conjunto habitacional.
Mulheres pardas e com idade entre 30 e 49 anos compõem o perfil médio da população da Vila Kennedy, segundo dados do IBGE, tabulados pelo Instituto Pereira Passos, da prefeitura. Mas é difícil saber o retrato fiel de Vila Kennedy porque os dados coletados no último Censo do IBGE, em 2010, fazem referência apenas ao bairro ou às comunidades do entorno.
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Mas o IPP tabulou a renda de parte da favelas do entorno. A maioria da população de Alto Kennedy, Vila Progresso, Congo, Castor de Andrade, Estrada da Saudade e Sargento Miguel filho vive só com dois salários mínimos.
Em quatro anos, 37 mil removidos
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Nos últimos anos, o Rio sente os reflexos de diversos processos de remoção, especialmente em decorrência das obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Entre os casos emblemáticos estão a comunidade da Vila Autódromo, na Zona Oeste, para a construção do Parque Olímpico, e a Aldeia Maracanã, para as obras do entorno do estádio.
De acordo com estudo do arquiteto Lucas Faullhaber, em trabalho da UFF, divulgado pelo ‘Informe do DIA’, a prefeitura promoveu o maior processo de remoção de pessoas da cidade entre 2008 e 2012 — foram 37 mil. Já no governo Lacerda foram 31 mil (1961-1965) e 20 mil no de Pereira Passos (1902-1906).
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Quem quiser saber mais sobre a história das remoções no anos 1960 pode acompanhar o calendário de exibição do documentário ‘Remoção’, que reconta a história das comunidades. Luiz Antonio Pilar e Anderson Quack, da Cufa, assinam direção e roteiro.
OS FILHOS FAMOSOS DA VK
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Quando viram nas telas de cinema e da televisão o “capitão Matias”, personagem do filme ‘Tropa de Elite’, maior sucesso de público do cinema nacional, os moradores de Vila Kennedy logo reconheceram o rapper André Ramiro. Morador da área até os 25 anos, o agora ator da Rede Record é um dos orgulhos da população. Hoje vivendo em Copacabana, ele continua visitando os amigos da comunidade e participa de parcerias culturais na região com outros artistas, como o cantor Toni Garrido, também ex-morador de VK.
O tom saudosista só muda quando o assunto é a violência. “Os valores que aprendi na vida, aprendi no meu bairro: amor ao próximo, respeito, não discriminar ninguém por cor, credo ou opção sexual. Eu não me tornei um traficante. Mas hoje a vila tem uma situação muito complicada. Há alguns anos, a gente não via certas coisas, como o tráfico em plena praça da Vila Kennedy, e as nossas crianças estão crescendo com isso”, desabafou André, em entrevista ao DIA.
O lateral-direito e capitão do Flamengo, Leo Moura, é outro ex-morador que guarda com carinho as lembranças da infância no conjunto. Foi no campinho da Praça Barrão que o craque rubro-negro arriscou os primeiros dribles e marcou os primeiros gols. Boa parte da família de Leo ainda vive na região e, sempre que pode, ele visita os amigos e parentes. A opinião dele é a mesma de André Ramiro. “A violência preocupa, principalmente a facilidade que as crianças têm para entrar no mundo do crime”, diz o jogador, ao pedir intervenção na segurança do bairro.