Rio - Como bom malandro nascido e criado na área, Luarlindo mal desce do carro e vai pedindo salvaguarda ao leão de chácara de plantão: “Chefia, pode tranquilizar o pessoal. É o jornal O DIA. Viemos fazer umas fotos do velho prédio da ‘Ultima Hora’ pra uma matéria sobre o golpe militar de 64.” O negão de quatro costados faz ar solene com a explicação esmiuçada e abre as cortinas: “Tô lembrado do senhor. Fiquem à vontade, a casa é de vocês.”
Não há vestígios na Rua Sotero dos Reis, nos desvãos da Praça da Bandeira, do cenário dos anos 1960. No número 62, as ruínas do que foi a sede da ‘Ultima Hora’ (sem acento) parecem saídas de um ataque em Cabul. É um esqueleto de escombros e recordações. Dividida em cômodos, a construção de quatro andares abriga toda sorte de negócios, as variadas reputações. Um bar com balões vermelhos se destaca no segundo piso, mas nem pense em sushi, no máximo um torresmo de três dias. Logo abaixo há um recinto ao qual se chega por um corredor feito de cortinas plásticas de banheiro. Tudo tão caseiro e tão mundano.
Nos tempos da ‘UH’, havia mais glamour. Nem que fosse na aparência. Luarlindo sabe dessa história desde o berço. Nasceu na vizinha Rua São Cristóvão, hoje Ceará. “Os corredores da ‘Ultima Hora’ eram decorados com painéis de Di Cavalcanti”, lembra ele, Dustin Hoffman dos trópicos, a voz de tenor abafada pelo som de uma jukebox. Samuel Wainer, o dono da ‘UH’, não perdia a pose. A redação tinha só dois Jeeps, mas ostentavam numeração que induzia a uma frota bem maior: “Eram o 40 e o 70. Embora a gente andasse mais era de bonde mesmo”, recorda Luarlindo.
Criado a mão de ferro pelo velho Antenor, banqueiro do jogo do bicho da área, e a pão de ló pela avó Beatriz, Luarlindo entrou na ‘UH’ aos 14 anos. E quase como um castigo. Antenor arranjou para o moleque um bico no plantão noturno da ‘UH’, farto de ir buscá-lo no Serviço de Assistência ao Menor (SAM), para onde era levado pela polícia por jogar bola na rua de cueca. “Eu fazia o plantão ajudando o Silva Jr, que sempre dormia depois de tomar umas e outras. Aprendi muito com ele.”
Carros, motos e caminhões passam lentamente pela estreita Sotero dos Reis. Em dezenas de biroscas, mulheres cansadas de guerra oferecem prazeres de ocasião, o preço a combinar. “Tira uma foto comigo, bonitão.” Risos, olhares, o mata-mata regado a Dubar. Nada que o velho repórter Luarlindo Ernesto da Silva já não tenha visto em seus 70 anos de estrada.
“Ali era uma chapelaria das mais finas da cidade, prédio estilo inglês vitoriano”, aponta Luar para uma garagem de ônibus. Já estamos na antiga Rua São Cristóvão. Ele para em frente ao número 41. “Nasci aqui. Eram quatro quartos e duas salas, casa de meio quarteirão. Dois pianos, um deles de cauda”. Os olhos aguados vão para a sacada do sobrado, cabeça de porco de mágoas alheias, e só não vertem lágrima porque um amigo o reconhece. Luar não lembra o nome, mas não perde o rebolado: “E aí, tomou juízo?” O outro rebate: “Juízo é marca de cachaça.”
Na esquina de Sotero dos Reis com Ceará havia uma ‘sucursal’ da UH. Certa vez, Samuel Wainer ameaçou levar as máquinas de escrever para que os repórteres dessem expediente do boteco. Luarlindo saía da redação à meia-noite com o inseparável Waldinar Ranulpho para a ronda noturna. Parada obrigatória era o Beco da Fome, em Copacabana, onde o caldo verde da Lindaura reunia bandidos, policiais, jornalistas, músicos e intelectuais, não necessariamente nessa ordem.
“Cansei de sair do Zicartola com o Nelson Cavaquinho sem nada no bolso. Aí ele vinha pelos botecos vendendo samba, a gente ganhava o da passagem e ainda fechava outros bares”, lembra Luar, já bem em frente à esquina da Rua Hilário Ribeiro, conhecida em priscas eras como Rua dos Adornados, devido ao alto índice de traições por metro quadrado. Ela forma com a Sotero e a Ceará o Triângulo das Bermudas — a zona do baixo meretrício onde é fácil perder o rumo. As três desembocam nas ruínas da antiga estação de trem Francisco Sá, que não leva mais ninguém a lugar nenhum.
Nosso guardião de quatro costados segura o trânsito para a derradeira foto diante do número 62. O Club 454 vai ajeitando meia-dúzia de mesas na calçada, a freguesia não tarda. São cinco da tarde. Uma moça com o copo de cerveja quente até o topo parece sem forças para encarar mais uma noite no batente. Não é nada fácil a vida das meninas. A moça mais ajeitada do lugar não dá moral a caminhoneiro. Vestida de lingerie lilás, a manequim é chamariz para uma das vendinhas de roupas íntimas que dividem com as biroscas e os mafuás a freguesia da Vila Mimosa e arredores.
Dois cigarros depois, Luar faz piada com a ironia do destino. Criado pelo dono dos pontos da Praça da Bandeira ao Gasômetro, até hoje não sabe jogar no bicho. E embora tenha herdado 12 casas do velho Antenor, não lhe restou nenhuma para contar história. “A cada casamento desfeito, uma casa ia embora. Como casei 19 vezes, fiquei devendo sete.” Noves fora a vida, a gente é que deve alguma coisa ao mestre Luarlindo por tanta lição de vida.