Rio - Há um Rio onde meninas de pele dourada não desfilam à beira-mar, aonde turista não vai e onde nem mesmo a melhor das imaginações é capaz de transformar em letra de samba. São 11h20, na Nova Holanda, Complexo da Maré, favela ocupada pelo Exército. A rua está cheia de gente, principalmente crianças. Numa tenda improvisada, dois casais sentados ao chão riem, visivelmente entorpecidos. Seguem um ritual que lembra o fumo do narguilé, mas lá, na roda, estão pedrinhas, que de tão miúdas parecem inofensivas. São quatro, cinco, fumadas em sequência, num copo de água vazio. A média é de 16 por dia. Ali, na miséria, dia e noite não se separam.
A fissura pelo crack, tema de série que O DIA começa hoje, é o que dita o compasso do tempo. “Ainda não dormi. Estou virado. Por ela, pela droga”, conta X., 37 anos, ao ser abordado por uma equipe de acolhimento da prefeitura.
Os olhos se destacam no rosto sujo. As mãos, cheias de anéis, estão imundas e envelhecidas, assim como o rosto, que aparenta ser de um homem de 50 anos. No peito, carrega um cordão com chupetas. O acessório é um signo de paternidade. Quem tem filhos tem o objeto num bolso do short esfarrapado, num alfinete pendurado na camisa encardida, independentemente dos laços rompidos.
“Está vendo? São quatro, um para cada filho. É para lembrar deles, que ficaram com as mães”, conta X., que contraria o senso comum e mostra lucidez e consciência sobre sua própria realidade.
Ele é ‘casado’, “não sabe há quanto tempo”, com Y., 24 anos, fisionomia de 40, dona de sorriso quase sem dentes e de uma chupeta. Os dois moram na cracolândia da Rua Flávia Farnese, a dois quarteirões da Avenida Brasil. Seguem o padrão de comportamento do acampamento de tendas, barracos de papelão, plástico, muita pobreza e lixo.
Lá, praticamente, não há ‘solteiros’. Os relacionamentos são efêmeros, mas fiéis enquanto duram. E isso pode ser dois dias ou dois anos. “O tempo da rua é outro. Eles se conhecem hoje e se ‘casam’. Para esse homem, a questão da genética é muito inferior. Ele assume (naquele universo) a mulher e o filho, mas elas geralmente recusam essa paternidade.
A bagunça deles é, sim, organizada”, explica a psicóloga Diana Ribeiro, uma das coordenadoras do Projeto Proximidade, da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Com seu grupo, ela vai até quatro vezes por dia à cracolândia oferecer assistência. “Tentamos convencê-los a tirar a identidade, ir a um dos nossos centros, tomar um banho, fazer um lanche. Não é tratamento de cura. É oferecer serviços, cidadania, para motivá-los a ter uma outra vida”.
Mergulhar no universo do usuário de crack que vive nas ruas é derrubar alguns mitos. Se de longe são apenas um formigueiro de maltrapilhos, sem rumo, inaladores sem justificativa do vapor da cocaína, na grande angular nota-se uma lógica de convivência de comunidade.
Há regras, hierarquia e código de conduta. A droga é partilhada, assim como a comida e o sentimento de segurança. Em comum, têm, além do vício, histórico de problemas familiares, baixa escolaridade e a recusa em aceitar tratamentos de saúde. “A gente aqui tem meta 5 (reais), entendeu? Meta 5. Se não conseguir, pega R$ 2,50 de um e junta com o de outro. Nóis (sic) divide tudo”, conta Z., 24 anos.
O valor da “meta” compra a menor pedra de crack e é conseguido, na maioria das vezes, na ‘correria’ — garimpo no lixo de objetos para venda e pequenos bicos — e nos furtos. A compra não pode ser em moeda, porque o tráfico só aceita notas. As maiores pedras custam R$ 10 e R$ 20. E, no Jacarezinho, onde a cracolândia na linha do trem chega a ter 185 pessoas numa única manhã, há comerciantes que fazem a troca do dinheiro, com ágio de até 20%.
No copo de água, o saciar de um prazer
O copo de água é o cachimbo da vez. E, na cracolândia da Nova Holanda, ele é oferecido por R$ 1 em mesinhas de compensado de madeira ou plástico que são colocadas na frente das cabanas usadas como moradia, alimentando o comércio de um produto só e que mostra que a cadeia do vício vai além da boca de fumo do tráfico.
São os próprios usuários que vendem para eles mesmos o utensílio para fumar. O processo para o uso é sistemático e tem uma certa morbidez. Fazem-se dois furos na tampa do copo e tira-se a água. Num dos buracos, a pessoa joga a pedra e, no outro, aspira o vapor. A combustão é feita com a brasa de cigarro de tabaco.
Os estalos da queima explicam o nome da droga, crack, e contrastam com o silêncio do viciado, hipnotizado enquanto prepara a pedra para saciar o desejo. Os efeitos chegam como uma pancada e, em segundos, ao sistema nervoso.
A ‘onda’ é igualmente instantânea. Quase nunca ultrapassa um minuto. É essa curta duração uma das explicações para a aglomeração de grupos que consomem a pedra. Eles precisam aplacar a fissura a todo momento. Por isso, estabelecem-se próximo ao local onde a droga é vendida. É a territorialidade desenhada pelo consumo.
“É diferente da cocaína e da maconha, que têm efeitos duradouros. A forma de consumo do crack faz com eles fiquem na rua. Essa pessoa que consome a pedra não sai de casa pela manhã, trabalha, faz o uso e volta a se recolher. Ela fica, ali, na rua”, explica o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore André Zílio Maximiano.
Mundo de valores próprios
Talvez seja apenas a sensação de estar limpo diante de tanta sujeira. Em vez do banho, quase raro, enfeites. Muitos. Anéis, cordões, pulseiras, relógios até quase toda a extremidade do antebraço. Adornos que, para alguns, são inegociáveis até mesmo na fissura.
“Arruma 20 (reais), amor!”, grita D., 31 anos, no burburinho das tendas, para o ‘marido’. “É para o crack”, confessa ela, que ostenta um bracelete. Não importa se os cabelos estão desgrenhados, se a pele está comprometida por dermatoses, se as unhas parecem seladas por barro. A cracolândia é uma imensidão onde o belo tem codificação própria. E, nos padrões de lá, o pacote para atração resvala principalmente no companheirismo. Nessa lógica, ter a arcada dentária completa ou não é tão invisível como ter uma casa em Paris. Se é ali que se vive, o real tem que ser palpável.
No Jacarezinho, o crack cria padrões entre os usuários. Até um trecho da linha do trem é o subúrbio, onde os mais miseráveis se encostam na parede enquanto consomem. Do outro ponto em diante, é a ‘Zona Sul’, onde barraquinhas vendem as pedras. Lá, há preciosidades que se perderam por causa da droga. C., 36 anos, é um caso. Toca violino, violoncelo, violão e cavaquinho. Já se apresentou na Europa. Hoje, trafica e consome, mas diz que vai mudar de vida.