Rio - Com um médico que tem mais de 50 anos de ‘experiência’ e tabela de preços que variavam de R$ 1 mil a R$ 7,5 mil, uma quadrilha especializada em praticar abortos em várias regiões do Rio foi desmantelada nesta terça-feira pela Corregedoria da Polícia Civil durante a Operação Herodes.
GALERIA: Operação Herodes desmantela quadrilha especializada em abortosPara não levantar suspeita, as clínicas ofereciam prescrições médicas pós-aborto e revisões. A medida era para evitar que as pacientes procurassem hospitais depois dos procedimentos. “Assim, eles seriam descobertos, e o esquema poderia ser denunciado. Por isso continuavam acompanhando as mulheres mesmo após os abortos”, explicou o delegado Felipe Bittencourt, da Corregedoria.
Entre os detidos estão 10 médicos e um homem que exercia a função ilegal. Os profissionais ganhavam por aborto, e os valores variavam de acordo com as unidades. Um deles chegou a realizar em um dia 50 procedimentos, totalizando R$ 180 mil a receber.
Muitos dos profissionais já haviam sido presos. Contra a médica Ana Maria Guimarães Barbosa, por exemplo, acusada de agir em Guadalupe, há mais de seis mil denúncias de aborto no ano de 2001. Já o médico Carlos Eduardo Pinto, acusado de fazer cirurgias em Campo Grande e Bonsucesso, já havia sido preso em outras três oportunidades. Um dos detidos é porteiro de um prédio em Copacabana. Ele recebia R$ 960 para avisar ao grupo sobre a chegada de policiais.
Agentes cumpriram 57 mandados
Foram cumpridos 57 dos 78 mandados de prisão expedidos e outros 118 de busca e apreensão. Entre 2011 e 2013,os investigadores confirmaram 37 casos, entre eles o de uma menina de 13 anos. O esquema, monitorado por 15 meses, contava com o envolvimento de policiais civis, militares e advogados.
Segundo as investigações, os acusados agiam em sete núcleos, em Copacabana, Botafogo, Tijuca, Rocha, Guadalupe, Bonsucesso e Campo Grande. Aloísio Soares Guimarães, Guilherme Estrela Aranha, Evangelista P. da Silva Ferreira, Iracema Ferreira Piske, André Luis da Silva, Rosemere Aparecida Ferreira e José Luiz Gonçalves são apontados como os chefes desses grupos.
De acordo com a polícia, apesar dos endereços distintos e ‘administrações’ de diferentes pessoas, as clínicas mantinham relações com o encaminhamento de pacientes. Os lucros mensais chegavam a R$ 300 mil por unidade. “Esses lugares eram verdadeiros açougues humanos. Eles matavam como se tivessem matando bezerros. Alguns médicos viviam somente das clínicas de aborto”, afirmou o delegado Glaudiston Galeano, da Corregedoria Interna da Polícia Civil do Rio.
Na casa do médico Aloísio, que possui anotação criminal de 1962 pelo mesmo crime, os agentes encontraram aproximadamente R$ 530 mil e um extrato bancário com um valor de US$ 5 milhões, que teria sido enviado para um banco suíço. Carros, joias e dinheiro também foram apreendidos em outros endereços. Duas máquinas de sucção foram encontradas. Em Bonsucesso, policiais apreenderam documentos de duas mil cirurgias, totalizando receita estimada em quase R$ 3 milhões. Os abortos eram feitos em mulheres com semanas de gestação ou com até sete meses de gravidez.
Os outros detidos desempenhavam funções de médicos, enfermeiros, agenciadores, recepcionistas, transportadores, fornecedores, seguranças e olheiros. Todos irão responder pelos 37 abortos, associação criminosa armada e associação para o tráfico. Há ainda quem tenha sido indiciado por corrupção passiva, prevaricação, exercício ilegal da Medicina — já que há um falso médico preso — e corrupção ativa.
Concentração em áreas nobres, tiroteio na Vintém
Cinco pessoas denunciadas já estavam presas quando a operação teve início. Os policiais percorreram pontos na capital, Baixada, além dos estados de São Paulo e Espírito Santo. Vários endereços de envolvidos se concentravam na Zona Sul e Barra da Tijuca.
Aloísio foi preso em seu apartamento, no Leblon. Já Walmir Alves da Silva, perito legista da Polícia Civil que realizava abortos, foi detido num edifício da Av. Atlântica, na orla de Copacabana. Os policiais da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima apreenderam na casa de Walmir documentos, computadores e alguns objetos de interesse específico da investigação.
Na Rua Antônio Basílio, na Tijuca, agentes encontraram o major Paulo Roberto Nigri, do 12º BPM (Copacabana). Durante a operação, policiais civis que estão na Vila Vintém, em Realengo, na Zona Oeste, encontraram resistência dos traficantes. Eles teriam ido à comunidade para estourar uma clínica de aborto. Houve troca de tiros, e moradores da região ficaram assustados.
Principal causa de mortes
Dados da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Rio (SGO) indicam que cerca de 1 milhão de brasileiras fazem aborto ilegal por ano no país. “O procedimento é a principal causa de morte de gestante em início de gravidez”, alerta Antônio Braga, professor de Obstetrícia da UFRJ e da UFF e diretor da SGO .
Para o especialista, a sociedade brasileira precisa discutir se quer proibir e punir o aborto e conviver com esse quadro de falência de saúde pública ou legalizar o procedimento. “Ocorre que o aborto, mesmo legal, cria uma cicatriz na alma da mulher, então é preciso investir em planejamento familiar”, avalia Braga.
“A gravidez indesejada é resultado de falta de educação e de descumprimento da Lei, já que a Constituição garante o direito ao planejamento familiar e o dever do estado em fornecer os meios contraceptivos”.
Agentes davam proteção ao esquema
Entre os grupos investigados, foram identificados 14 servidores públicos. Oito policiais civis, quatro PMs, um bombeiro e um sargento do Exército — que comandaria o núcleo de Guadalupe. Os acusados agiam na segurança dos ‘estabelecimentos’, restringindo o acesso às clínicas, ou fornecendo informações e evitando que fossem realizadas investigações nas delegacias das regiões. Todos recebiam propina e eram pagos pelos serviços.
“A Polícia Civil sai da lógica de sempre fechar clínicas. Esta é uma estrutura praticada há mais de 30 anos, e todas as clínicas foram mapeadas e tem toda uma ramificação de envolvidos. O trabalho foi feito para colocá-los na organização criminosa”, afirmou o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame.
Toda investigação contou com o depoimento das 37 pacientes, que esmiuçaram as atividades nos endereços. Além disso, foram realizados exames periciais que comprovam os procedimentos. “Precisamos que outras mulheres que já realizaram os abortos denunciem. A legislação é muito benevolente com esses criminosos. A gente quase é obrigado a dizer que vale a pena cometer esse tipo de crime, pois eles fazem isso há décadas. Só com as denúncias poderemos evitar que novas ‘Jandyras’ (que morreu em setembro após um aborto) continuem a morrer”, enfatizou o chefe de Polícia Civil, Fernando Veloso.
A quadrilha também contava com o auxílio de três advogados, todos indiciados. Eles agilizavam o processo de libertação dos detidos após as operações. Em poucas semanas, os profissionais voltavam a cometer os crimes.
Colaborou Flávio Araújo